sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A Embalagem

Este é mais um dos meus escritos e até fez parte de uma coletânea dos Novos Escritores do Cone Sul (lembram do Cone sul?)

A Embalagem

Era quase hora de fechar o super mercado. Ela, a mulher de capa de chuva, procurava alguma coisa com paciência e determinação. Percorreu muitas vezes os corredores e todas as prateleiras, olhando, observando cada detalhe com atenção, até que parou ao seu lado um funcionário de terno escuro e crachá. Ele era alto, simpático, daqueles que têm sorriso de príncipe encantado. Aquele sorriso de funcionário cumprindo o seu dever. Era um belo sorriso, mas não era de verdade. -Posso ajudá-la? Notei que procura alguma coisa muito especial, pois já percorreu todas as prateleiras, até a de importados e o seu carrinho continua vazio. Falou ele todo gentil. -Procuro sim, procuro algo muito especial. procuro amor. Uma grande quantidade. falou com seriedade. Ele, sem se abalar, fixando os olhos castanhos nos dela falou com a mesma seriedade. -Qual embalagem prefere? Lata papelão, madeira, plástico, vidro, os práticos sacos de papel, ou ainda a moderna longa vida? Ela respirou calma e profundamente e continuou: -Bom, eu não sei...qual é a sua sugestão? -Hum...a lata por muito tempo, foi uma embalagem muito apreciada e bem aceita. Por isso se tornou muito comum. Até minhocas e flores já foram enlatadas. As flores nascem um tempo depois que se abrem as tampas e regam-se as sementes, já as latas baixinhas como as de peixe, e as quadradinhas como as de chá, são conhecidas no mundo inteiro pelo formato. Mas sabe como é, em lugares perto do mar, elas sofrem oxidação com a maresia e a ferrugem as corrói com rapidez espantosa. Já o papelão infelizmente não resiste a umidade e se deforma, tornado-se assim uma embalagem rapidamente envelhecida só no manuseio. Também não suporta grandes empilhamentos. -E de madeira? Talvez uma madeira nobre como o sândalo e a canela? Falou ela seriamente interessada. -Ah, a madeira...romântica e aconchegante, delicada ao tato, cheirosa...mas não muito adequada. Tem a questão do peso, e seu perfume pode se tornar enjoativo ou ignorado com o passar do tempo. Não, talvez a madeira não... -O plástico..?! -É o plastico talvez, tão moderno versátil, colorido ou sem cor, opaco ou transparente, duro ou flexível, leve, inodoro... não plástico não é inodoro, tem um cheiro característico e apesar da longevidade mostra rapidamente um aspecto envelhecido, arranha e fica feio. -E que tal o vidro? -O vidro sim, é bonito, higiênico, transparente ou opaco, colorido ou sem cor, fino ou grosso, leve ou pesado...pensando bem, acho que não também. O vidro bonito mesmo é o cristal, mas é frágil, muito frágil. -Afinal, qual é a sua sugestão, a embalagem longa-vida? -Ah, é mesmo, a longa-vida sim é possível, é uma idéia moderna com cinco camadas, costura reforçada...é mas também não dá. Apesar de tudo, a longa-vida é frágil, não suporta pressão externa, também não suporta empilhamento. Seu limite é pequeno, sua resistência é pouca. Não, esta também não dá... -Então o que fazer? Só nos restou a louça?! -Também não. A louça é dura e quebra fácil e quando quebrada e depois colada, sempre ficam as marcas das emendas. -Então...? -Então, infelizmente não sei como lhe ajudar neste momento... Falou ele pensativo, fixando os olhos nos dela. -Então você quer me dizer que não tem amor em nenhuma embalagem? -Bem, amor tem em toda parte, tudo o que é idealizado e é criado, é feito a partir do amor. O amor cria, o amor pela criação constrói, se multiplica e se eterniza. Falou meio sem jeito, como se nem ele tivesse parado para pensar nisso. Ela então olhou para ele sorrindo e perguntou: -Vocês vendem muito amor por dia aqui, em todas as embalagens? Qual a mais procurada? -Ah, tem para todo gosto e todo tipo de amor. A embalagem já revela a intensidade do conteúdo. -E há quem devolva por comprar errado ou com defeito? Ela continuou perguntando cheia de curiosidade. -Ah, sempre tem, é claro. Há quem leve até uma quantidade errada, e até quem desperdice por não saber usar ou dar o devido valor. -Muitas pessoas voltam para buscar mais ou isso nunca acontece? -Isso acontece com bastante frequência. Pessoas que acham que não vão se dar bem, ou que não têm boas experiências anteriores, preferem comprar aos poucos. Existem algumas até que compram um pouquinho todos os dias. Dizem que são as mais felizes, porque estão sempre renovando e repondo na medida certa.

As portas do super mercado forma se fechando e ela agradecida se despediu do funcionário atencioso de terno escuro e crachá. Muito segura e satisfeita, se dirigiu para a saída. Ao passar pelo balcão onde estava a caixinha com o escrito "Sugestões à Gerência", ela parou pegou um papel e uma caneta e escreveu:

"A melhor embalagem para guardar o amor é o coração de um ser humano. Ali estará resguardado de tudo. De ser enferrujado, amassado, quebrado, rasgado, esquecido e perdido. Ele o multiplicará sempre, o renovará todos os dias e reporá suas páginas de história umas sobre as outras, durante toda a sua existência e deixará sua marca de passagem pelo mundo".

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