terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Continuando a História da "A Bicicletinha": Como se tivessem lhe dado uma paulada na cabeça, o rapaz olhava para o pacote disforme em sua mão, para frente e para os lados ainda sem saber o que fazer. Não sabia se levava a bicicletinha para a parte de cima do ônibus e a colocava ao seu lado no banco, ou se a deixava no bagageiro junto de sua mala. Afinal era uma bicicletinha de estimação, de família, tinha passado por gerações, não podia deixar que nada acontecesse com ela. Não dá para comprar outra, só em antiquário, sei lá. E agora? Deodorinho era daquelas pessoas metódicas, meticulosas, perfeccionistas, que não sabem lidar com imprevistos e esse era de bom tamanho. A conselho do motorista que assistiu tudo deixou a bicicletinha devidamente registrada com etiqueta de bagagem no bagageiro inferior, mesmo porque ele havia comprado só uma passagem e não poderia ocupar o banco do lado que deveria ser ocupado por outro passageiro. Respirou fundo e ainda aturdido entrou no ônibus, conferiu várias vezes o número do lugar com a passagem que levava na mão como se não soubesse mais ler e só então, sentou-se. Olhou pela janela e ainda viu dona Santinha abanando uma mão freneticamente enquanto a outra assoava o nariz. Retribuiu pateticamente o gesto sentindo os ouvidos zumbirem cada vez mais alto. A viagem seria longa, aproximadamente onze horas ou mais. Olhou diversas vezes o relógio sem conseguir ver as horas. Finalmente o motorista deu partida e ruidosamente o ônibus foi se deslocando para a saída da cidade em direção ao seu destino. Deodorinho ainda ficou olhando para fora, observando a noite escura por um tempo até que viu as últimas luzes da cidade ficarem cada vez mais para trás, e só aí então, fechou os olhos e dormiu. Quanto tempo, não saberia dizer, talvez uma hora, talvez uns minutos, o fato é que de repente Deodorinho pulou no banco assustado, como se o ônibus com poucos passageiros a bordo, tivesse dado um grande solavanco num daqueles imensos buracos de estrada. Parecia que seu cérebro tinha se iluminado fantasticamente com uma lucidez assustadora. Um filme começou a passar pelo seu pensamento e com olhos arregalados de pavor, ele se viu descendo do ônibus no Terminal Rodoviário do Tietê em São Paulo, que ele iria conhecer logo depois do raiar do sol daquela segunda-feira de final de novembro. Pouco antes das sete da manhã, ele estaria num lugar desconhecido e até assustador, pelo que ele tinha ouvido falar e visto pela televisão. Imaginou-se andando pelo meio daquela multidão com uma enorme e pesada mala, entulhada de roupas de frio e tudo mais, em pleno verão, suando e com uma bicicletinha na outra mão. Precisava encontrar uma pessoa que nunca viu mais gordo e que também não o conhecia. Como eles iriam se conhecer? Quantas pessoas andam pela rodoviária carregando bicicletinhas? E se a dona Santinha não conseguiu falar com a mãe do menino? E se o marido da mulher tiver um compromisso logo de manhã e não puder ir ao meu encontro? E se o menino ficou doente durante a noite e eles o levaram ao médico? E se a doença for grave e eles o internaram? E se eles se separaram ou morreram ou a dona Santinha morreu depois que eu saí da cidade e nem deu tempo para ela telefonar? Ela é bem velhinha, então a mãe do afilhadinho Genivaldo não vai saber que estou levando a bicicletinha para o menino dela e não vai falar para o marido que não vai se preocupar em me encontrar, mesmo que seja o seu dia de folga. Por que ele iria deixar de dormir um pouco mais ou pescar para ir de manhã cedo à rodoviária buscar uma bicicletinha que mandaram de Minas? É claro que ele iria pescar e não iria por nada desse mundo buscar uma bicicletinha na rodoviária. E se não for o dia da folga dele então? E se ele trabalha numa grande empresa e não pode sair em horário de serviço para ir pegar uma bicicletinha na rodoviária as sete da manhã de uma segunda feira, que a madrinha do menino mandou do interior de Minas? Ou é daqueles bem chatos que não gosta de fazer favor para ninguém nem por uma bicicletinha de estimação que pertenceu aos antepassados da madrinha do filho dele, a d.Santinha? "-A madrinha que se lixe! - Ele vai dizer. Eu é que não vou pegar uma bicicletinha às sete da manhã na rodoviária do Tietê para o filho da minha mulher! -" E como é que eu faço? Tenho que comparecer na empresa e assumir o meu emprego e não posso chegar lá às nove horas da manhã levando pela mão a bicicletinha de estimação da dona Santinha! Ou quem sabe eu pego a bicicletinha e guardo no guarda volumes?! O seu Alfeu me disse que na rodoviária tem uns armários, que a gente paga para guardar coisas. É, mas eu trouxe pouco dinheiro e não vou gastar pagando estadia para a droga da bicicletinha, sem falar que tenho que voltar na rodoviária depois para pegá-la e vou levar para onde depois? O que eu vou fazer com a bicicletinha de estimação da dona Santinha, meu deus, vou ficar com ela na pensão onde vou morar? Mas se eu ainda não encontrei a pensão que vou morar?! O seu Laureci do frete me deu o endereço e eu nem desconfio se fica na direção do meu trabalho, sem falar que já faz mais de quinze anos que ele se hospedou só por uma semana naquele lugar. Pode ser que nem exista mais, nem a pensão e nem o prédio... Depois como é que eu vou para uma pensão de bicicletinha na mão? Vão me perguntar se é do meu filho, e eu vou ter que dizer que não, ora! E que desses assuntos eu nem entendo muito, nem de filhos e nem de fazê-los e se querem saber a verdade; até sou virgem. E depois é uma bicicletinha antiga, eles nem vão acreditar que não é minha mesmo, vão achar que é uma daquelas lembranças que a gente guarda e leva com a gente, para o resto da vida. Como o meu travesseirinho que está na mala, ou um ursinho qualquer. Vão me achar um cara estranho e meio esquisito e aí vão me botar para fora da pensão e eu vou morar aonde? Vou ter que pegar outro táxi e com certeza o motorista vai me levar até outra pensão e vai me perguntar se a bicicletinha é minha e eu vou ter que contar que é da d. Santinha e que o pai do afilhado dela não é pai nem é padrasto talvez vá pescar mas se não for, vai me encontrar as nove horas na rodoviária do Tietê, depois de me deixar na outra pensão, porque na primeira me botaram para fora só porque não quis ter filhos nem bicicletinhas e nem ursinhos na infância. E só porque resolvi arranjar um emprego numa grande empresa de São Paulo, a minha madrinha que me criou, pediu aos santos e santas para ir a Santa Casa buscar o táxi do seu Laureci para me levar no guarda volumes da pensão e pegar o afilhadinho de d. Santinha que morreu de tanto telefonar para São Paulo e que ficou lá desde as nove horas... E assim Deodorinho, ficou remoendo elucubrações enquanto roia o que restava das unhas pelo caminho. De manhã, em plena segunda feira, naquele caos total de transito, quando o ônibus encostou na plataforma de desembarque do Terminal Rodoviário do Tietê, Deodorinho tinha olheiras profundas, o rosto cinza amarelado que denunciava uma noite insone e desesperada, tentando resolver o problema da bicicletinha. Ao ver que o ônibus atrasou e já eram mais de oito horas, Deodorinho caiu num choro convulsivo e se deu conta que perdera a entrevista de emprego, pois seria impossível chegar lá às nove horas. Antes de desmaiar e dos enfermeiros tira-lo de dentro do ônibus e coloca-lo numa ambulância, ainda pode ver pela janela, que para todos os lados que olhasse, pessoas levavam pela mão uma bicicletinha de todos os tipos e cores. Afinal era época de Natal.

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