A Bicicletinha
-Viva! Viva! Consegui, consegui...
Ele gritava e pulava timidamente com os braços para cima percorrendo a pequena casa onde morava com sua madrinha que o acompanhava logo atrás toda contente, festejando a boa notícia com aquele que para ela, era um filho.
Deodorinho não teve como se costuma dizer, muita sorte na vida. Filho de mãe solteira que morreu no parto, foi criado pela avó, já idosa e doente que veio a falecer quando o garoto entrava na adolescência. Desde então se mudou com seus poucos pertences para a casa da única parente que lhe sobrou; a tia e madrinha d. Firmina, senhora idosa, muito religiosa, que lhe completou os estudos com o pouco dinheiro guardado na poupança por, sua avó, para o futuro do neto.
D. Firmina, senhora de princípios rígidos, beata assumida, se viu de repente com a incumbência de criar aquele menino, ela, que por sua vez também era solteira como foi até morrer sua irmã, a mãe do Deodorinho.
-Fazer o que? Vontade de Deus! Ele é que manda no nosso destino e não podemos fugir dele.
Dizia ela conformada.
Meio perdido em referências familiares, principalmente masculinas, criado por mulheres de idade avançada muito religiosas e costumes antigos, o garoto tornou-se um tanto esquisito. Muito magro e alto, olhar meio cismado, sem vícios, sem namorada, mas a bem da verdade era muito inteligente e educado, isso não se podia negar. Estudioso, introspectivo e muito inseguro diante da vida, sua cabeça era povoada de indagações, sonhos e realizações como todo mundo, mas faltava aquele viço e a firmeza de um homem. Tinha as mãos sempre úmidas de suor nervoso. Vestia-se sempre com camisa de manga comprida e colarinho abotoado. Não tinha amigos de sua idade. Freqüentava a biblioteca Municipal onde lia de tudo, satisfazendo as suas curiosidades. Foi sempre bom aluno e agora era um homem formado. Até fez alguns cursos e alguma especialização numa empresa pequena de uma cidade vizinha, o que não contribuiu muito para sua segurança. Havia uma aparente incoerência entre ser inseguro e sonhar grande. Mas Deodorinho era assim. Sua cabeça sonhava alto, queria morar numa grande cidade, talvez numa capital, ganhar um bom salário e crescer na vida ser igual a todo mundo, seja lá o que isso queira dizer. Podia ser até uma cidade bem longe não tinha importância, ele iria assim mesmo. Para tanto foram encomendadas por sua madrinha e o padre da cidade, inúmeras novenas e visitas da imagem da Santa Edwiges, São Judas e Santo Expedito em sua casa com novenas no local para conseguir o intento. E eles não lhe faltaram, logo no semestre seguinte veio a resposta de uma grande empresa da Capital lhe oferecendo emprego e convocando-lhe o comparecimento na próxima segunda-feira, as nove horas da manhã portando todos os documentos para a entrevista. Seria no começo da semana seguinte.
-Viva! Viva! Consegui o emprego! Consegui!
Gritava timidamente Deodorinho, com o coração acelerado de emoção empunhado o telegrama para o alto, numa das mãos, acompanhado das palmas da madrinha d. Firmina provocando a curiosidade de suas vizinhas mais próximas que vieram ver o que estava acontecendo e entrando sem cerimônia na casa, para fazer parte daquela alegria da qual se sentiam também um pouco autoras, já que suas orações e comparecimento às novenas também tiveram algum peso na decisão dos santos. Todos batiam palmas e entoavam cantos sacros em louvor a Deus. Até que cansados, pararam ao redor da mesa da cozinha e resolveram tomar um refresco com biscoitinhos caseiros para comemorar.
Agora mais descansados todos comentavam os detalhes da viagem, o que ele deveria levar na mala etc...
-Não esqueça de um bom agasalho!
Isso era primordial para uma delas que repetia com ênfase de vez em quando.
-Na capital de São Paulo, faz frio!
-Mas estamos em final de novembro...
-Nunca se sabe numa capital como São Paulo, acontece coisas que até Deus duvida que dirá, um frio de repente!
Uma delas até contou com muitos detalhes, que tinha um afilhado muito querido que se mudou para lá assim que nasceu e ela sabia que ele estava sempre com bronquite. Agora já estava curado e ia até para a escolinha, um amor.
-Coitadinho, morando lá naquele fim de mundo! Nunca esqueço dele, “judiação”, sempre faço orações por aquele menino, mas a minha comadre sempre escreve contando como ele vai passando, é, escreve sim. E quando a carta demora, eu telefono; nunca se sabe o que pode acontecer por aquelas bandas.
Falava com a maneira peculiar do interior.
E assim as velhas senhoras, algumas disfarçando as lágrimas de saudade precoce, no afã de agradar Deodorinho falavam sem parar deixando o rapaz cada vez mais embaraçado e aturdido, com tantos conselhos, palpites e opiniões. No fundo mordia-lhes a curiosidade de conhecer outra cidade e transferiam para ele essa emoção enquanto ele contava os minutos e os segundos para sair dali conhecer o mundo lá fora, ver ao vivo as coisas que via na televisão e nos livros que lhe pareciam bem diferentes desse mundinho em que ele vivia no interior de Minas entre padres e beatas. Ele reconhecia todo o carinho da madrinha e de suas amigas que o rodeavam o tempo todo desde menino, mas queria sair logo dali. Por isso mandou currículo para uma grande empresa na capital de SP e deu sorte, agora foi chamado para entrevista. Um frio na barriga se tornou constante daquele momento em diante, mas a vontade de ir era maior. Todos estavam felizes por ele e com ele.
Aquele final de semana foi muito agitado, inigualável. Aconteceu de tudo. Era um corre-corre só. Sua madrinha ficou tão nervosa que a pressão subiu, deu uma batedeira no coração e tiveram que leva-la para a Santa Casa o único hospital da cidade. Demoraram por lá umas horas e voltaram para casa com d. Firmina medicada e cheia de recomendações médicas, pouco tempo antes do embarque para São Paulo.
As amigas já tinham lavado e passado toda a roupa de Deodorinho que repousavam esticadas e prontas para a viagem sobre a cama ao lado da imensa e entulhada mala. Uma canja quente e saborosa esperava sobre o fogão na cozinha, enquanto o cheiro de café e pão caseiro se espalhava pela casa.
Agora passada a euforia, um pouco mais calmos todos conversavam animadamente à mesa naquele final de domingo inesquecível.
Ao anoitecer ele já estava pronto, vestido de colarinho e gravata, para uma viagem de aproximadamente onze horas, ouvindo pela milionésima vez as recomendações educativas de cada uma delas, como se ainda tivesse sete anos de idade e fosse o seu primeiro dia de aula; ele que já completara vinte e seis. Sorria automaticamente como se fosse o príncipe encantado das histórias infantis. Concordava com tudo e nem por um momento demonstrava sua aflição interior. Ninguém que o observasse descobriria seus pensamentos.
Deodorinho pensativo e calado num sorriso congelado no rosto observava ao redor, aquele mundinho que ele conhecia tão bem, já sentindo um pouco de saudade desse burburinho de visinhos, do cheiro do café e pão caseiros, desse carinho espontâneo de cidade pequena onde todos se conhecem. Jamais esqueceria disso tudo. Jamais! Pensava ele.
Iria para um período longo de viagem, chegaria ao amanhecer de um novo dia para uma nova vida. A chegada estava prevista para antes das sete horas. Tempo suficiente para lavar o rosto no banheiro da rodoviária, fazer a barba e tomar um café antes de pegar outro ônibus com destino à entrevista para o seu novo emprego. Estava anotado tudo num papel com horários cronometrados, até o endereço de uma pensão que lhe deu seu Laureci, do frete, onde se hospedou quando foi a São Paulo há quinze anos atrás. Começaria a partir daí uma nova vida. Não tinha idéia quanto tempo levaria para poder voltar para sua casa, aquele lugar, aquelas pessoas. Talvez não voltasse nunca. Quem sabe? Isso ia depender de muitas coisas. Entre elas o de gostar ou não da nova vida. E do novo emprego.
Um pouco depois enquanto todos esperavam o táxi que o levaria à estação de embarque, ele ficou novamente pensativo isolando seu pensamento das infindáveis recomendações sentindo o seu coração bater no pescoço. Fechou os olhos por um momento e pensou; - Preciso relaxar. Preciso me apresentar bem e muito seguro. Afinal em breve estarei dando os primeiros passos na brilhante carreira de executivo. Preciso de muito autocontrole. -
A aparente calma constante não deixava transparecer o turbilhão de pensamentos desencontrados que faziam sua cabeça latejar. Deodorinho tinha o temperamento fechado. O seu sofrimento desde seus primeiros anos de vida, fez com que controlasse suas emoções, para não ser rejeitado como uma criança chata, chorona ou teimosa. Assim nunca dizia não para ninguém, principalmente para a sua madrinha e as amigas dela que o mimavam e o achavam “uma moça” de tão educado.
Finalmente chegou a hora da despedida. Todos choravam copiosamente, Deodorinho sorria amavelmente para todas aquelas velhas e conhecidas senhoras, amigas e vizinhas de sua madrinha. Beijava uma a uma abraçando-as antes de entrar no táxi do seu Laureci do frete. Este também era seu conhecido, tinha um caminhãozinho de frete e um automóvel antigo como táxi. Os fregueses telefonavam e contratavam ou o caminhão ou táxi. Assim ele estava sempre servindo a comunidade. E era ele que levaria Deodorinho até o ônibus com as bênçãos de todas as velhinhas e do padre, que chegou a tempo de lhe fazer o sinal da cruz de longe abanando um adeus junto com elas. Sentado ao lado do motorista foi olhando para traz e também abanando a mão para o pequeno comitê de despedida em frente a casa, enquanto enxugavam as lágrimas de saudade sincera, até sumirem no final da rua.
Quando o táxi virou a curva da esquina da estação de ônibus ele viu uma das amigas da sua madrinha, dona Santinha, correndo com muita dificuldade, esbaforida mesmo. Vinha em sua direção com um enorme embrulho mal arranjado na mão, segurando o que parecia ser um cabo num dos lados.
-Ah! Graças ao São Judas, padroeiro das causas impossíveis, eu consegui chegar a tempo, vim rezando para conseguir e finalmente consegui.
Falava ofegante e sem parar, vermelha como um pimentão.
-Deodorinho, meu querido, nunca lhe pedi nenhum favor, mas esse eu vou pedir porque você é da maior confiança, meu filho; Lembrei-me que tinha guardado no porão a bicicletinha de estimação da família, que primeiro foi do meu filho Vesúvio, depois do meu neto Armandinho que já está quase um homem, e eu quero mandá-la agora para o meu afilhadinho, que mora lá em São Paulo, o Genivaldo. Não vai lhe dar nenhum trabalho, meu filho. Logo, um pouco mais tarde, que o telefonema é mais barato, eu ligo para a minha comadre e ela manda o marido pegar a bicicletinha na rodoviária bem cedo. Assim que o seu ônibus chegar, ele já vai estar na rodoviária esperando.
O que ela chamava de bicicletinha era um daqueles tradicionais triciclos, também conhecidos por "tico-tico", com assento de madeira, que quase todo mundo que viveu “antigamente” teve um.
Um frio gelado percorreu a espinha de Deodorinho e o sorriso de príncipe encantado congelou na face. Sem saber o que dizer e sem poder se negar ao delicado pedido da veneranda senhora, pegou num dos lados do guidão que aparecia fora do papel mal ajeitado e sem conseguir articular uma sílaba despediu-se da sorridente e suarenta amiga de sua madrinha que vibrava feliz por mandar o “presentinho” para o afilhado.
Continua amanhã...
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