A Soma das Diferenças é a Composição de Todos
O pai da Camila lia despreocupadamente o jornal pela manhã quando a jovem sentou-se à mesa para o desjejum. Sem tirar os olhos do jornal aberto na seção de política, lhe desejou um bom dia, sendo respondido em seguida.
-Bom dia papai. Posso lhe pedir um favor?
-Sim claro.
-É que eu tenho um novo namorado e quero lhe apresentar, se possível ainda hoje.
-Por que assim tão rápido?
Perguntou olhando-a por cima dos óculos enquanto abaixava o jornal calmamente para olhá-la melhor.
-É que talvez não seja do seu agrado, como sempre, então não quero me envolver demais se não for para ter um futuro.
Falou com seriedade e quase rispidez.
Sorridente, o pai lhe envia um doce sorriso de prazer incontido ao ver o quanto sua filha se preocupava realmente com sua opinião. Até respirou fundo antes de falar mansamente.
-Por que pensa assim de seu pai, filhinha? Eu só desejo o melhor para você, jamais faria alguma coisa para vê-la sofrer...
-E o que aconteceu ao Paulo? E ao Marquito, ao Dráusio, ao Sérgio, ao Tadeu...
-Foram tantos namorados assim, minha querida?
-Foram muitos, papai, muito mais do que eu gostaria. O senhor está se esquecendo que já passei dos trinta anos ha muito tempo? Já estou perdendo a esperança de encontrar alguém que seja do seu agrado.
-Olhe, minha querida, você sabe quais são os meus argumentos, o meu pensamento em relação aos seus namorados...
-É, mas não consigo entender o porque dessa bobagem, não acredito que em todo o planeta exista alguém que tenha a mesma mania que o senhor.
-Que bobagem, minha filha. Como pode pensar assim a meu respeito? Qualquer pai tem preocupações com os filhos...
-Mas não baseadas em teorias estapafúrdias como as suas.
-Minha filha!
-Desculpe papai, mas o tempo está passando e não consigo encontrar alguém que preencha o seu gabarito. Além do que o “mar não está para peixe”. Os homens já não nascem mais em árvores, atualmente eles são flores de estufa. Raríssimos.
-O que é isso minha filha, com a sua beleza física e o seu interior todos os homens caem aos seus pés, desde que você lhes estenda seu olhar magnânimo, é claro.
-É claro! Claríssimo! Bem se vê que o senhor não sai de trás deste jornal e da frente da TV. Meu pai, a realidade atual é outra. Ande pela rua, pergunte às pessoas e não se baseie em meia dúzia de palavras impressas ou faladas na mídia. Elas não são unanimidade. Repito, a realidade é outra. Não existem pretendentes no mercado.
A mãe até aquele momento estática e calada como uma esfinge do outro lado da mesa resolveu se manifestar.
-Meu bem...
-Calada!
Responderam pai e filha juntos sem permitir a interferência daquela pessoa que para eles não tinha mais importância que um objeto qualquer daquela sala. Um verdadeiro candelabro com velhas e descoradas velas.
-Mas eu só queria pedir que me passassem a geléia...
Contrariada pela interrupção Camila pegou os dois potes de geléia que havia na mesa e colocou-os diante da mãe, deixando bem claro que não queria mais interrupções enquanto decidia o seu futuro com o seu amado e autoritário pai. Gênio difícil que a filha herdou, bastante carregado nas cores.
-Veja bem, minha filha, quando eu lhe explico minha teoria e você não aceita, nossa família entra em conflito e a paz desse lar se esvai como água morro a baixo.
-O senhor não me entende, meu pai. O senhor impõe um argumento completamente sem lógica. Baseado em quê, uma pessoa não pode escolher seu companheiro aleatoriamente? Tenho sempre que saber primeiro a árvore genealógica da pessoa, desmembrar cada ramo, verificar as suas origens, lhe passar todo o relatório para depois de um tempo indefinido, o senhor me dar a resposta que sempre é negativa; enquanto isso eu faço o que? Como posso fazer uma coisa dessas cada vez que arrumo um namorado? Que explicação ou desculpa dar a ele para a sua exigência? Seu excesso de zelo?
-Muito simples como das outras vezes diga que eu sou um apaixonado por heráldica, genealogia, sei lá, você é tão inteligente, criativa, dê-lhe uma desculpa convincente. E até porque não deixa de ser verdade. É muito simples, é só uma questão de boa vontade.
-Simples claro! Não é o senhor que tem que arrumar a desculpa esfarrapada e ainda esconder a verdade, tudo isso enquanto namora. Muito fácil. Foi fácil assim com mamãe?
-O que você acha?
-Há quantas famílias mamãe pertence mesmo?
-Oito. Exatamente oito, sendo só de três raças.
-E quanto às raças? Como é possível? Desde Adão e Eva?
-Ora desde Adão e Eva seria impossível, apesar de que seria o ideal, mas é claro que dentro desses últimos quinhentos anos já me contenta. Depois do descobrimento, vá lá.
-Descobrimento do Brasil?
-Sim, desde mil e quinhentos.
-E quanto à mamãe?
-O que tem ela?
-Como a encontrou mesmo?
-Eu fui buscá-la naquele vilarejo onde oito famílias o fundaram e lá a encontrei.
-O senhor não a encontrou, é muito diferente, o senhor a seqüestrou naquela comunidade religiosa que não permite acesso à civilização, sem luz elétrica e nenhum outro meio de comunicação, jornal, rádio e tv. Isso foi uma covardia de sua parte, papai.
-Não diga isso, foi por uma boa causa. Raça pura não é uma boa causa? Quanto mais pura melhor.
-Como boa causa? É como quer que eu arranje um marido? Quer que eu também seqüestre um? Quem sabe na mesma comunidade de onde saiu mamãe?
-Não, lá é impossível! Não podemos nem passar por perto, apesar de reconhecer que se você fosse um rapaz em vez de uma garota, as coisas seriam bem mais fáceis.
-Não consigo compreender essa sua mania...
-Não é mania já disse! Tenho motivos científicos para defender a minha teoria.
-Sim eu sei o senhor já me disse “trocentas” vezes, mas para mim a sua teoria não vale nada, nem um centavo da minha boa vontade, não tem importância nenhuma. Não concordo com o senhor em nada, mas como Voltaire, lhe dou o direito de defendê-la, e o meu respeito como filha, ainda lhe dá um pouco de crédito.
-Menina teimosa! O que lhe digo e faço é para o seu bem, minha filha.
-Este seu argumento é de domínio publico, aliais de domínio paterno. Todos os pais e mães do planeta usam esta frase quando querem impedir aos filhos o direito de escolha. Isto não é justo. Vocês fazem chantagem.
-Chantagem fazem vocês, filhos, quando não querem ver o que é certo, o que é melhor...
Ia repetir a frase mais uma vez quando se deu conta que esta não funcionava mais com a sua amada e muito teimosa filha. Precisava rever seus argumentos e preferiu calar, enquanto estendia a xícara para que a mulher lhe servisse de mais café.
-Minha filha quer que eu lhe faça uma omelete?
-Omelete? Ficou louca, mamãe? Vou trabalhar senão me atraso, não esqueçam que vocês vão conhecer o meu novo namorado, hoje à noite.
E saiu apressadamente em direção ao seu quarto para terminar de se arrumar.
A mulher ia perguntar para o marido se queria omelete, mas nem chegou a abrir a boca e ele respondeu voltando a olhar para dentro do jornal.
-Não!
Realmente aquela família não encontrava nunca um consenso sobre os direitos de cada um.
A mulher pensava e agia como uma escrava de senhores tiranos. Era quase transparente para o marido excêntrico e egocêntrico e a filha mimada e teimosa.
Enquanto ainda retirava a mesa do café a filha passou por eles como um raio, apressada e saiu batendo a porta, sem nem se despedir. Lá fora se ouviu em seguida o carro acelerado se afastando cada vez mais.
A noite já ia alta quando a campainha da porta tocou e em seguida a porta se abriu para um homem ainda jovem de barba crescida de terno e gravata, calçando tênis, que entrou pela sala trazido pela mão de Camila.
O Pai já não gostou daquela extravagância moderna. - Onde já se viu um homem de terno calçando tênis?- Não pode ser uma pessoa normal. A culpa é da mistura cada vez mais desenfreada. - Pensava aceleradamente enquanto o moço se aproximava para cumprimentá-lo, segurando-lhe a mão com as suas duas. -Muito estranho só pode ser a mistura... _ pensava sem parar. –Onde minha filha encontrou essa criatura?-
-Boa Noite seu Noronha. Tenho muito prazer em conhecê-lo.
-Boa Noite, sente-se, meu jovem.
Ignorou o comentário complementar ao cumprimento. E ficou calado examinando-o descaradamente diante do visitante causando certo constrangimento.
A mãe de Camila entrou discretamente na sala o que fez com que o rapaz desse um pulo como se fosse ejetado da cadeira, estendendo-lhe as mãos, para novo cumprimento.
-Minhas mais sinceras saudações, senhora, sua filha sempre lhe menciona com palavras de carinho.
Pai e filha se olharam em extremo espanto, ao perceber o quanto o moço era educado e gentil com a senhora, mesmo sem ter nunca ouvido da namorada a palavra mãe e nem sequer teria sido informado da existência dela; soube ser gentil em sua presença.
-Você é muito gentil e cavalheiro, obrigada.
Falou a mãe num fio de voz, constrangida com o inusitado em sua apagada vida, pedindo licença para ir preparar um café para todos.
-Pois bem meu rapaz, fale-me de você. Vejo que é um moço muito educado e gentil como bem mencionou minha mulher.
-Sou um homem comum que estuda sempre para melhorar e trabalha com seguros, daí a minha facilidade em me comunicar. Talvez seja isso que lhes deixei passar; esta característica da minha personalidade. Não tenho constrangimento em elogiar e em tratar bem às pessoas. Por ser cristão vejo no meu semelhante um irmão e potencial.
Daí, olhando por uns momentos nos olhos da filha, o pai de Camila respirou fundo e resolveu ir direto ao assunto, pois haveria uma entrevista que lhe interessava assistir na TV, e sem muitas filigranas foi direto ao assunto do seu real interesse.
-Meu rapaz, de qual família você descende, qual raça, qual é a sua origem?
-O senhor é racista?
-Não, claro que não! Não me leve a mal, minha filha já deve ter-lhe dito que aprecio a genealogia das famílias, e gostaria de saber a origem de sua família, pelo lado paterno e materno, claro.
-Que gosto estranho o seu, me desculpe à sinceridade, Sr. Noronha. Eu poderia saber do senhor qual é a sua origem? A sua ascendência? Também sou curioso...
-Eu perguntei primeiro...
Sorriu meio sem graça, querendo suavizar a conversa, mas no fundo já querendo despachar o jovem ali mesmo, porém ainda lhe restava de algum ancestral a nobreza de receber bem e com educação.
Então, indo buscar paciência nas profundezas do seu ser aguardou-o pensar um pouco e responder:
- Em princípio até onde eu sei, descendo de Espanhóis e Franceses por parte de avós maternos, mas do lado de meu pai, que Deus o tenha, segundo minha mãe, eu tenho origem portuguesa do lado do meu avô e também africano como minha avó, mas também uma das bisavós era índia e a outra Paraguaia. Do lado de minha mãe também têm Italianos, Ingleses e Irlandeses...
-Você é uma salada de frutas, meu filho.
Interrompeu-o escandalizado.
-E o que tem isso? O que importa é o meu caráter, a minha pessoa.
-Não, para mim importa e muito a sua origem, ora veja!
Falou indignadíssimo quase ofendido por estar na presença de tão misturada criatura.
-Eu não consigo entender...
Falou o rapaz olhando desesperadamente, quase pedindo socorro à Camila, que pálida e dura como uma pedra assistia impassível mais uma vez aquela cena cada vez mais comum na vida dela. Tudo acontecia como sempre, e como sempre, na cozinha sua mãe mantinha o café aquecido numa garrafa térmica e acomodava as delicadas xícaras sobre uma toalhinha de renda numa pequena bandeja de prata antiga, para o momento certo de entrar novamente na sala. Enquanto arrumava tudo com gestos mecânicos, acompanhava atentamente, graças à boa audição, o desenrolar da conversa no ambiente ao lado.
Mais uma vez a cena se repetia, e mais uma vez as esperanças de Camila em se casar, escorriam pelo ralo. Não conseguia entender como uma pessoa inteligente como o seu pai pode ser tão intransigente com relação a esse assunto, a mistura de raças? O que o levava a implicar com todos os seus namorados a ponto de impedir que se casasse?
E a conversa continuava...
-Você na realidade não é de raça nenhuma, não vê? Você não tem origem definida.
-E em que isso importa? Eu não sou um ser humano? Sou uma pessoa digna, trabalhadora, não tenho vícios e nem taras ou qualquer comportamento que denigra a minha pessoa. O senhor deve ser uma pessoa com problemas psicológicos sérios, só pode ser, nunca vi nada igual.
-Está me chamando de louco? Entra na minha casa e debaixo dos meus bigodes me chama de louco? Ora faça-me o favor!
Os ânimos estavam ficando cada vez mais alterados para desespero das mulheres que não abriam a boca, cada uma em seu canto.
-O senhor é uma pessoa estranha, será que sua filha lhe herdou essa mania de ofender? Sim porque se for, nem a quero mais. Não toleraria viver com uma mulher assim.
-Não ofenda a minha filha. Ela é o bem mais precioso que tenho e não admito que sugira qualquer deficiência nela, seja física, seja comportamental. Ela só tem qualidades.
-Muito bem, fico contente com isso, mas o senhor com esta mania de raças e origem de família, mais parece uma pessoa meio desequilibrada. Repito, nunca vi uma coisa dessas, e olha que eu trabalho com o público, com pessoas de todo o tipo, mas o senhor me deixa abismado.
Falou olhando ora para Camila, ora para o pai, com olhar de espanto, como se não acreditasse no que estava ouvindo ali, naquela sala, e continuou;
-Se for racismo vou lhe denunciar e fazer um boletim de ocorrência agora mesmo. Vou recorrer a Lei Afonso Arinos. Não admito isso; nos dias de hoje alguém descriminar o seu semelhante por racismo ou outro preconceito qualquer.
-Não vai não, já lhe disse que não é racismo.
-Então explique o que é.
-Está bem, meu jovem, eu penso que vai chegar uma hora em que o ser humano vai explodir de tanta interferência racial...
-Como assim?
-Senão veja: Acompanhe o meu raciocínio. Calcule de quantas raças você é feito?
-Imagino que... Não sei nem faço idéia. O que isso tem a ver? Todo mundo é feito de muitas raças, mas daí...
-Deixe-me continuar; Claro que tem a ver. Tudo que é muito misturado perde o valor.
-Como perde o valor, ficou loco?
-Perde o valor sim. Potencializam-se os estigmas, as marcas de personalidade. Vou dar um exemplo; Você pega uma tinta branca e pinga duas gotas de corante azul, mais duas de amarelo e mais duas de vermelho e vai misturando e colocando mais, assim por diante. Depois mistura com as tintas que já são misturas como o verde que é a mistura do azul com o amarelo, o laranja que é a mistura do vermelho e amarelo, o roxo que é o azul com o vermelho e assim continuando a misturar vai virar “cor de burro quando foge” e não vai dar certo.
-Mas uma coisa e misturar tintas, e outra é misturar raças.
-Para mim dá no mesmo. Vai chegar uma hora, que em meio a estas “zilhões” de células que se compõe o corpo humano, teremos uma célula de cada raça. Olhe só o absurdo, não paro de pensar nisso e não posso concordar com isso! Não sei como os geneticistas não vêem este absurdo e não fazem alguma coisa?! É patético que um homem comum como eu veja o óbvio, e ninguém mais veja?
-Qual é a sua origem? Diga-me, para eu ver se a sua preocupação tem fundamento.
-Eu tenho na minha família, até onde eu já consegui investigar: Russo, Alemão, Australiano, um Coreano, Inglês, Argentino, Chileno, Peruano e uma bisavó que descendia de Porto-Riquenhos. Ora veja, se já não dá uma boa mistura essa minha? Agora se minha filha casar com você e me derem um neto, com a sua mistura mais a dela que leva a minha e a da mãe que descende de Canadense e Americano, com um pé no México; não vai dar. É colapso total. É demais para a minha cabeça.
-É só não pensar...
-Como não pensar? Isso é a mais descabeçada loucura. Alguém tem que parar com isso. Nunca vou permitir que a minha filha case com alguém que tenha misturas além das nossas.
Enquanto proferia essas últimas palavras enxugava lágrimas de desespero.
Sem saber o que argumentar o jovem calou-se e um silêncio sepulcral e constrangedor abateu-se sobre eles por uns momentos; e antes que retomassem a conversa, entrou na sala com a bandejinha na mão, D.Sara Lee, trazendo um cafezinho cheiroso acompanhado de biscoitinhos de araruta, para fechar aquela conversa sem pé nem cabeça que sempre acontecia ao longo destes anos em que a filha começou a namorar.
Serviu a todos em silêncio, guardados em seus pensamentos, poucos momentos antes que o moço ainda atarantado saísse por aquela porta sem se despedir e nunca mais voltasse...
Fim
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