De tanto chegar às minhas mãos aqueles panfletos "mágicos" que nos oferecem verdadeiros milagres num estalar de dedos, dinheiro, empregos de primeira, encosto, mau olhado, ciumes, inveja, conseguir um amor, seja ele quem for (compromissado ou não (!))separações, todo tipo de pedido com garantia (!!!) como o de Oscar de Xangô, Walter de Xangô ou Regina de Oxum (????) Babalorixás (que de acordo com o panfleto) estão ao nosso inteiro dispor, é só telefonar (tele-búzios) e estão todos "conectados" 24 horas com as entidades que regem suas cabeças como eles mesmos se definem, eu resolvi escrever este conto.
"A praga"
Andrade era um homem quieto, pacato mesmo, até um pouco apagado, sem expressão. Daqueles que só falava o necessário, quando muito necessário mesmo, principalmente em casa, a bem da verdade lugar que ele pouco parava. Era casado com Deolinda, mulher fogosa, faladeira, agitadada e que "não comia enrolado", rodava a baiana" e "quebrava o barraco" por qualquer "venha cá uma palha". Brigava alto, fazia escândalo por qualquer coisinha à toa , principalmente quando Andrade saía do sério, no parecer de Deolinda, é claro, pois o pobre do Andrade não estava nem aí com coisa nenhuma, muito menos com a Deolinda. Andrade era daqueles homens que cumpria as suas obrigações sem dar muita importancia ao fato. Fazia o que devia e o que tinha que fazer e pronto. Parecia que nada o estimulava, nada o fazia vibrar de emoção ou de alegria. Era um ser apático diante da vida. Vivia por viver, só isso. Só uma coisa fazia Andrade empolgar um pouco, mas só um pouco, era ficar longe de Deolinda, de preferência na beira do rio, pescando quieto, vendo o rio passar sem parar diante dele desviando ora aqui, ora ali de uma coisa qualquer, calado e tranquilo como ele próprio.
Mas Deolinda queria morrer de ódio com esse jeito de ser do Andrade, pois em nada se parecia com ele e com isso, cada vez viviam mais distantes um do outro, cada um mergulhado no seu universo. Ela era cheia de vontade de viver, dinâmica, lutadora, inquieta por natureza, acreditando firmemente e sempre em seus sonhos e propósitos. Trabalhava o dia todo num escritório de contabilidade, sem perder o controle das obrigações domésticas. Não tiveram filhos; talvez porque Andrade também não era muito chagado em sexo. De vez em quando e sempre por iniciativa e muita insistência de Deolinda ele "comparecia", mas sempre naquela de fazer por obrigação, e não por prazer ou desejo. Ja passava dos sete anos de casados, quase oito, e para desespero dela a apatia dele só aumentava. Só tinha uma coisa que o motivava a sair daquele marasmo; era ir pescar. Sair de casa e ir para a beira de um rio e lá ficar perdido e esquecido. Realmente era só isso que ele demonstrava interesse em fazer; Pescar. Talvez porque fosse a única coisa que combinasse com a personalidade dele: uma vara de pescar, uma barraca velha de acampar à beira do rio e nada para pensar e se preocupar ou fazer durante horas a fio, observando o rio passar em silêncio, contornando os obstáculos como Andrade fazia com a vida. Não lutava por nada, só contornava os problemas. Nem o peixe lhe interessava, até porque tinha preguiça de limpá-los. Ele só queria ficar ali quieto, sozinho, longe da mulher e já lhe bastava.
Naquele dia Deolinda acordou "com a macaca". Se aproximava do feriado e não conseguia programar nenhum passeio com o marido que só lhe respondia que ela fizesse o que quisesse, que para ele estava bom, pois como sempre, ele iria pescar. Mas na verdade o que ele queria mesmo era que ela fosse para bem longe e lhe desse sossego. Talvez nem saísse de casa, ficaria vendo televisão, assistindo um bangbang velho, dormindo, qualquer coisa, ou talvez resolvesse mesmo ir pescar. Mas o que ele mais queria era que ela saísse de vez do seu caminho, isso sim.
Um amigo, dos poucos que tinha no seu trabalho, certo dia lhe perguntou, ao vê-lo resmungar alguma coisa da mulher; por que não separavam-se? No que ele respondeu:
-E você acha que vou começar tudo de novo, com outra maluca? Eu é que não! No começo até que é bom depois começam os defeitos, não, deixa quieto...
E assim, sem ninguém entender esse modo tão peculiar de ser, Andrade levava a vida, ou a vida que o levava, sei lá.
Naquela manhã ensolarada e quente, depois de engolir, sem sentir o gosto do café, Deolinda olhava fixamente para o marido esperando pelo menos uma breve e trivial conversa em torno da possibilidade de passarem o feriado juntos, mas foi em vão: ele ignorou-a solenemente. Indignada com a pasmaceira do marido levantou-se da cadeira e falou bem alto:
-Eu vou sair, não aguento mais olhar a sua cara!
-Vai meu bem, faça como quiser...
Falou ele sem deboche, mas no automatismo de sempre, já sonhando com a possibilidade de ir para a beira do rio sozinho. La ele armaria a velha barraca e ficaria sem fazer nada e sem ninguém lhe aborrecer até o feriado acabar.
-Ah! Coisa boa, nada para me apoquentar...
Murmurou para si mesmo, logo que ouviu a mulher sair batendo com toda a força a porta da frente, fazendo estremecer os bibelôs que enfeitavam a prateleira da sala.
E lá se foi ela pisando firme, indignada com aquele palerma do marido que ela tinha arrumado. - Também com a idade que casei, sobrou o quê?- , resmungou. Tive que me contentar com o que apareceu.
E assim andava pela rua chateada, com os pensamentos descontrolados, desesperada com a lástima de vida que levava com o homem que escolheu.
As vezes dava graças por ter um marido, mesmo que meio esquisito como era o Andrade; pelo menos não envelheceria solitária, como dizia a sua mãe, mas logo depois, via nele só um peso morto, alguém que não a estimulava em nada.
Muito confusa, não sabia mais o que pensar. Quando chegou à esquina para tomar o ônibus, um garoto lhe entregou um panfleto que dizia: "Depressão, angústia,desemprego, traição, abandono, amor não correspondido, falta de dinheiro? Tenho a solução: Abro os seus caminhos e descarrego toda a sua aflição. Leio Búzios, Tarô egípcio, cartas ciganas, leio mãos e muito mais."
Foi aí que teve a idéia de que ela podia estar sendo traída pelo Andrade com outra mulher.
- Quem sabe ela me diz o que há com ele e quem a é a "cachorra" que entrou no nosso meio...
Falava sozinha enquanto procurava saber do endereço, que infelizmente, era num outro bairro, mas ela iria até lá, com certeza, falar com a "Mãe Doiá" Era assim que a advinha se chamava de acordo com o panfleto.
Um pouco mais tarde chegou no endereço que era um tanto pobre demais para quem apregoava resolver o problema dos outros mas ainda não tinha resolvido os seus próprios, mas estava tão desvairada que nem se deu conta disso, agora só queria saber quem era a "cachorra".
Foi entrando pelo úmido e mal iluminado corredor perfumado de forte cheiro de insenso, que levava até um quartinho iluminado por uma variedade de velas coloridas, santos e adornos místicos além de alguns tecidos colocados junto às paredes na condição de decorar e cobrir as paredes descascadas. Perto da pequena janela uma mesa redonda, coberta com uma toalha branca de plástico rendado, onde num dos lados um pequeno duende sorridente, um copo de água com uma pedra de vidro colorido ao fundo, e uma vela acesa sobre um pires lascado juntavam-se a um baralho gasto pelo manuseio. No meio do ambiente, de pé, uma mulher já "entrada em anos", vestida à moda cigana, com longa saia colorida e pulseiras de metal dourado, experiente em ouvir histórias de vida alheias, almas aflitas e afins, lhe recebeu com um sorriso amistoso e benevolente, deixando antever na expressão, bom animo para ajudar quem ali chegasse.
Convidou Deolinda a se sentar diante dela do outro lado da mesa perguntando em qual seguimento queria respostas para suas indagações; se através da consulta dos búzios, dos anjos da natureza ou das cartas ciganas, de qual?
-De qualquer um que me responda o que acontece com o Andrade?
Enquanto fazia o sinal da cruz sobre o rosto e peito, a mulher estendia o baralho com a outra mão num gesto teatral, fazendo uma meia lua com ele entre as duas, e fechou-o em seguida .
-O Andrade é seu marido; estou certa?
-Certíssima!
A mulher concentrou-se por uns momentos e murmurou uma espécie de oração incompreensível fazendo o movimento em cruz repetidamente sobre as cartas alinhadas num semi circulo.
-Vamos consultar as cartas ciganas. Elas respondem bem aos assuntos de casamento.
-Ótimo! Pode continuar então. Não saio daqui hoje sem uma resposta para o meu caso.
Ela tamborilava na mesa nervosamente enquanto falava. Era
visível a indignação de Deolinda. Era facílimo "adivinhar seu passado e seu presente e até o seu futuro, quem sabe?" Era uma ótima cliente para a "Mãe Doiá", bastava um pouco de experiência de vida, empatia, psicologia e saberia tudo.
-Você anda muito nervosa com o que está acontecendo não é mesmo, minha filha? Estou vendo aqui nas cartas, como você está aflita. Você nem dorme direito, não é filha? Olhe esta carta, esta dama de preto, é a mulher que gosta do seu marido, ela é morena..., quer dizer, tem cabelo escuro. Ela passa pela frente da sua moradia todo santo dia minha filha... oh, estou morrendo de dó de você... e você nem desconfia né? Ou você sabe...
(Pobre Andrade...)
E assim por mais de quarenta minutos a mulher "decifrou" um bocado de coisas da Deolinda e do Andrade. Depois de chorar muito e tomar a água que continha a pedra no fundo, e que de acordo com a mulher estava energizada pelas pelas forças da natureza, Deolinda (é claro) ficou mais calma e serenamente acabou contando toda a sua vida conjugal, a mulher então "muito compadecida" lhe contou o "segredo" do Andrade e muitas outras coisas mais, como por exemplo: que provavelmente ele em vez de pescar ia para a casa da "outra". Quanto mais a mulher falava, mas Deolinda descobria "vestígios" da traição do marido. Até o gosto por camisas azuis. Agora volta e meia ele só queria vestir as camisas azuis. Assim, segura de ter descoberto "tudo", Deolinda foi embora, não sem antes deixar sobre a mesa da mulher, uma polpuda soma em dinheiro. Mas pagou consciente de que tinha valido a pena cada centavo, a consulta.
Deolinda foi embora, calma por fora, mas furiosa por dentro. Agora ela tinha descoberto o "problema" de Andrade, mas como resolver? Ele devia ser discretíssimo pois na verdade nunca notara nada que o desabonasse, até a mania das camisas azuis. Se não fosse aquela mulher a lhe "mostrar" certos hábitos, aparentemente tão corriqueiros como indícios de traição, como nunca atender o telefone quando ela estava, por exemplo; ela sempre achou que era pura preguiça mas não é não, é porque a amante sabia quando ela estava em casa e não irira embaraçá-lo dizendo palavras de amor ao seu ouvido enquanto ele não poderia responder. Outra coisa, ele nunca a levava à pescaria, até porque ela não gostava, preferia ir passear com as amigas pelo shopping. Ele mais parecia um bobão, mas aí é que a gente se engana. As aparências enganam, mas ela saberia ser esperta. Ainda bem que a sortista lhe mostrou tudinho. Agora só precisava provar, mas não ia ser fácil. -E se ela fosse a pescaria ver de perto?- Pensava indecisa sem parar, - Ia ter que vigiar cada passo do Andrade, vigiar bem de perto, mas não ia ser fácil-. E assim os pensamentos fervilhavam na cabeça da Deolinda, criatura ingênua.
E a partir daquele dia ela ficou cada vez mais atenta aos movimentos do marido principalmente a história das camizas azuis. Ele tinha quatro, uma, a preferida, era xadrez em tons de azul, é claro.
-E eu que sempre achei que o Andrade simplesmente gostasse de camisas azuis, e não é nada disso, é um código para encontrar a mulher morena, a "cachorra"... Safados os dois!!!
Gritava indignada bufando...
Mas por mais que seguisse os passos dele, não conseguia saber nada. Ele continuava do mesmo jeito, nem água e nem sal. Até que chegou a véspera do feriado.
Enquanto tomavam o desjejum Deolinda tocou na possibilidade de passarem juntos, talvez uma pequena viagem até a casa da mãe dela, mas a discussão ficou feia. Ele teimou que não iria com ela para lugar nenhum e muito menos iria para a casa da sogra, no interior. Isso nem pensar. Ela que fosse sozinha, ele já tinha resolvido que iria pescar na beira do rio naquele feriado, e pronto e tem mais: com certeza, como sempre sozinho! Não queria ninguém com ele. Ja não aguentava mais aquele tormento que se chamava Deolinda, que aliais piorava mais a cada dia, para não dizer a cada momento. Ele iria para a beira do rio para a sua pescaria, sim! E não tinha mais conversa. Ela que fosse para onde quisesse, mas sem ele.
O bate boca na cozinha foi aumentando cada vez mais e de longe poderia se ouvir a gritaria. Os dois foram ficando cada vez mais exaltados até que Andrade se levantou da cadeira e foi até o quarto onde pegou uma bolsa, colocou algumas peças de roupa passou na sala pegou as chaves do carro e andou na direção da porta da saída. Foi quando ela veio de dentro gritando com algo na mão:
-Eu sei que você tem uma amante! Sei que é morena e passa aqui na frente, eu sei de tudo! Eu sei até das camizas azuis, seu safado!
Andrade mesmo desinteressado pela mulher não resistiu e falou:
-De que você está falando, mulher? Ficou maluca é? Que negócio de camisa azul é esse que você está falando? Acho que você enloqueceu de vez...
-Não se faça de mais bobo do que parece que é. Eu vou lhe jogar uma praga para nunca mais você me fazer de boba, viu, seu desgraçado. Você vai ser castigado pela justiça dos céus.
Enquanto falava sacudiu no alto o legume que era um pepino bem verde e todo encaroçado e falou:
-Está vendo este pepino, seu cretino? Ja que me trocou pela "cachorra" sem vergonha, pois quando você se encontrar com ela novamente vai ficar todinho empipocado como esse pepino aqui e se deus me ouvir direito vai ficar todo verde também, desgraçado, filho da mãe...
Gritando feito uma louca desvairada empunhando o fruto no alto da cabeça, ela atirou com toda a fúria o pepino na direção dele que se abaixou rapidamente, antes que se espatifasse na porta que fechou correndo, espalhando pedaços de pepino pela casa toda.
Andrade ainda olhou para traz com espanto, pois nunca tinha visto a mulher tão furiosa e muito menos dizer nada parecido com aquilo. Realmente sua mulher estava desiquilibrada.
-Enlouqueceu de vez!
Saiu falando sozinho, deu alguns passos até o carro relembrando a cena; achou tanta graça que saiu sacudindo a cabeça e dando gargalhadas jamais vistas em seu rosto.
-Imagine eu, todo empipocado feito um pepino, e ainda verde, mulher tem cada uma...
Enquanto isso, Deolinda se sentindo a mais desgraçada das mulheres, se jogou no chão e chorou até as lágrimas secarem, enquanto Andrade mais leve e solto do que nunca foi embora para a beira do rio assobiando feliz da vida, por se afastar de casa e principalmente hoje, da sua mulher depois daquela baixaria toda.
Deolinda finalmente levantou-se do chão e convicta que mulher nenhuma deve chorar por homem, "pois todos são iguais e não prestam", principalmente os que se vestem de azul, foi até o quarto e colocou umas roupas na mala e chamou um taxi, pois iria para a casa da mãe que também partilhava da idéia de que "homem não presta", e que o Andrade tinha uma amante com certeza, igual alguns casos que ela conhecia e costumava enumerá-los sempre que a filha chegava. É claro, que Deolinda ela ficou mais deprimida ainda...
-Todos homens são iguais, não valem a comida que comem. Eu nunca confiei no Andrade.
Dizia a mãe muito segura de si, quase feliz por te razão, aumentando a irritação de Deolinda.
Ao chegar à beira do rio, Andrade já esquecido do episódio doméstico, respirou várias vezes profundamente por estar no seu lugar preferido, no seu paraíso particular, longe da mulher, do trabalho, da sogra, etc. Ele só queria sossego. Queria a paz de não ter nada para fazer, nem horário para nada e nem ninguém para apoquentá-lo.
Quando foi armar a barraca já anoitecia, e ele ainda pode apreciar as primeiras estrelas surgindo no céu. Com a prática que tinha, num instante montou a barraca e arrumou os apetrechos ao lado, até acendeu um lampião e fez um café na pequena fogueira, e ainda o colocou numa garrafa térmica. Em seguida foi se deitar para dormir pois pretendia levantar logo cedo para pescar o almoço, era a melhor hora; de manhã cedo. Deitou e se acomodou bem entre as cobertas, e por um momento lembrou novamente da praga da Deolinda, fazendo-o sorrir da inusitada cena. Quase imediatamente caiu no sono de tanto prazer e relaxamento por estar ali longe da megera da mulher e da jararaca da sogra.
Na beira do rio ele era um homem livre de verdade.
De repente ele deu um grito que ressoou na mata e com certeza, entre as águas que passavam. Pulou de onde estava, desmontando a barraca sobre ele, ficando todo embolado entre aqueles panos e cobertores, custando muito a se desvencilhar de tudo, antes de se jogar aos gritos desesperados dentro das águas do rio. Confuso, no escuro, ja que tinha apagado o lampião e a fogueira, sentiu que o corpo inteiro foi invadido por um exercito de formigas, pois inadivertidamente montou a barraca sobre um formigueiro, já que chegou ao anoitecer e mal enchergava o solo, e nem reparou direito como deveria.
Desesperado ficou mergulhado na água fria do rio, nem sabe quanto tempo para aliviar as dores e diminuir o inchaço das milhares de pipocas que cresceram no seu corpo numa fração de segundo, enquanto se lembrava das palavras malditas da mulher. Foi aterrorzante!
- Maldita Deolinda! Desgraçada! Me jogou uma praga tamanho do mundo, ela me paga!
Falava aos gritos no escuro, morrendo de frio.
Quando amanheceu, vestiu uma roupa seca e voltou para casa desconsolado, imaginado a cara de felicidade da mulher, que é claro, que nunca iria acreditar que ele era inocente...
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