sábado, 6 de dezembro de 2014

Um Barbante e uma Caixinha

                                        Um Barbante e uma Caixinha.
Seu Agripino resolveu vasculhar as bugigangas guardadas no quartinho de trás.
A casa era antiga cheia de badulaques e se acumulavam por toda parte dos quase cinquenta anos que moravam ali.
Olha daqui, abre caixa dali, remexe no baú de metal que foi trazido da Iugoslávia pelo seu bisavô e por ai vai investigando as quinquilharias...
De repente uma caixinha preta pouco maior que uma caixa de fósforos das grandes, ou um maço de cigarros, lhe chamou a atenção; Era um gravador, um pequeno gravador de fita, ainda com uma fita usada pela metade. Interessadíssimo no artefato passou para dentro de casa e foi até o escritório procurar pilhas e uma possível fita remanescente do aparelho.
Achou as pilhas, mas nenhuma fita daquele tamanho.
Ligou o gravador fazendo aquele barulhinho de aceleração da fita. Um “zip” longo e desafinado.
Virou toda para um lado e depois toda para o outro. Apertou o “Play”, mas não conseguiu ouvir nada, apenas umas vozes que mais pareciam do além resmungando palavras inteligíveis.
Pegou o aparelho e saiu de casa, interessadíssimo em botar para funcionar o “brinquedinho” novo.
Foi até uma loja no Shopping e comprou a fita adequada.  Mais adiante entrou numa lanchonete, escolheu uma mesa num lado mais iluminado e pediu um café. Dai desmontou o aparelhinho sobre a mesa novamente, observando detalhadamente a sua estrutura. Colocou tudo de volta, as pilhas e a fita nova e jogou a outra fita na lixeira. Ligou o gravador e deixou a fita gravar todos os sons do ambiente, sons que ele mesmo selecionava em sua cabeça, uma fala aqui, uma risada ali, um barulho de coisa caindo, uma música de fundo, coisas assim, muito burburinho.
Na verdade ele não queria se imiscuir na vida de ninguém, ele era um senhor de idade, educado e muito discreto, meio solitário que só queria gravar o som da rua, da vida, do que está disponível para ser ouvido, só isso.
Nisso duas mulheres sentaram-se à mesa ao lado conversando animadamente.
-  “... Ele não é tudo aquilo que parece, acho que nem valeu a pena eu ter me arriscado tanto...”
- “O importante é que você tirou a dúvida, agora desencana e parte para outra amiga, “a fila anda...”
Daí ele pediu a conta e saiu para a rua, caminhou até a esquina seguinte onde um homem discutia com uma mulher e ele parou perto, quase ao lado, ligando o gravador discretamente que estava no bolso de cima da camisa, abriu um jornal e fez que estava lendo ali parado.
- “Mas é claro que fiquei esperando, não era quarta feira, o dia combinado de sempre, por que mudou agora? Cansou de mim, em? Fala desgraçado, cachorro, bandido!!!
Nesse ponto ele desligou e saiu de fininho antes que recebesse um sopapo, pois a mulher deu um safanão no homem o empurrando para traz que o fez desequilibrar e quase cair.
Andou em vários lugares com o gravador ligado e depois resolveu voltar para casa.
Entrou no ônibus e logo que sentou acionou novamente o aparelho para ver o que sairia, daí ao chegar em casa foi direto para a poltrona favorita escutar a fita e os sons da rua.
Havia o som de um violino desafinado tocado por um musico de rua. Um vendedor gritava suas mercadorias em alto e bom som. “Relógios à prova d’água com garantia de 400 metros de profundidade”, daí ele riu se lembrando de que o camelô vendia os relógios mergulhados em uma bacia de água.
Duas senhoras numa loja trocavam ideias sobre o que dar de presente para a outra amiga. Mais duas contavam de suas crianças e suas gracinhas e outra mulher  contava num grupo de um encontro com alguém que conheceu na internet.
De dentro do ônibus as conversas se misturaram mais só dando para ouvir palavras soltas e sem sentido, apenas um salmo inteiro saiu da boca da vizinha de banco que lia a sua Bíblia para quem quisesse ou não, ouvir completado com um hino, ficou pensando se ela não havia percebido que ele estava gravando e resolver dar um show.
Assim, seu Agripino passou um dia diferente com o seu gravador de vozes.

Dia seguinte ele voltou ao quarto de quinquilharias para ver o que havia para ele se distrair, coisa que quando se fica velho não se tem muito, ou se tem, quando se resolve viver como as crianças que brincam com um barbante e uma caixinha vazia...

2 comentários:

  1. Aperte o REC e grave: muito bom, Clotilde! Abraços.

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  2. Gostei da originalidade.
    Certa vez, vasculhando coisas antigas num depósito de velharias de nosso colégio, encontramos um realejo... É claro que a aula seguinte teve "fundo musical" para desespero do nosso professor...

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