quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Quando a luz se apagou...


Ontem uma das minhas homenageadas foi a minha ja falecida irmã Ely. Pessoa especial, muito inteligente e engraçada. Tinha um talento natural para representar, fazia teatro o tempo todo e vivíamos rindo por suas bobagens. Imitava conhecidos, parentes e criava tipos,  inventava personagens e na minha infância (faz tempo) faltava  luz com frequência e um dos hábitos dela era ficar fazendo teatro no escuro ou a luz de velas, para a gente dar rizadas. Contava histórias que ela inventava na hora e incluia personagens de todo tipo. Era só faltar luz lá vinha a Ely com suas histórias.
Por conta desses momentos escrevi este pequeno conto há muito tempo, acho até que já o postei por aqui, mas hoje volto a postá-lo em homenagem a esta criatura tão especial na minha vida.



Quando a luz se apagou...


Aquela era uma família comum. Daquelas que todas as noites após o jantar, se reúnem na frente da televisão para assistirem a programação noturna. Jornais, novelas, shows, filmes, etc. Durante as refeições falavam sobre o trabalho, os estudos e as novidades em geral. Uma família comum, como disse. O casal, duas filhas de 17 e 22 anos e mais a Tia Maria, uma senhora de quase noventa anos, irmã da mãe do dono da casa.
Tia Maria, apesar de lúcida, quase não falava. Só o necessário. Sempre muito educada e discreta, não incomodava, as vezes falava baixinho, como se conversasse com alguém. Todos a cuidavam meio automaticamente. Serviam-lhe a comida, ajudavam-na a tomar banho, coloca-la na cama, cobriam-na, periodicamente o médico vinha vê-la em casa. Passava a maior parte do tempo sentada na sua confortável poltrona perto da janela onde podia olhar para fora, ou ver televisão.
Tia Maria foi parar naquela casa a pedido da mãe do dono da casa. Se por acaso ela morresse, não deixasse Tia Maria sozinha. Era sua única irmã. Filho único, não teve como negar isso a sua mãe. Mal conhecera a Tia Maria que sempre morou longe deles, e agora já idosa, veio morar com sua mãe que acabou morrendo antes. Eles não sabiam quase nada dela, mas já se iam quase cinco anos. Felizmente tudo se acomodou bem desde o início e esteve assim, até aquela noite.
Tia Maria é daquelas pessoas aparentemente franzinas, mas que não pegavam um resfriado, não tinham problema de pressão, nem alta nem baixa. As vezes parecia “fora do ar”. Prestava muita atenção na televisão, resmungava baixinho, mostrava indignação com alguma notícia, mas era só. Tudo na calma.
Naquela noite ela estava atenta ao noticiário que entre outras notícias mostrava o caso de um homem que estava preso por engano há muitos anos, esquecido e inocente conforme declaravam. Tia Maria resmungou alguma coisa que ninguém prestou a atenção, e logo em seguida apagaram-se as luzes da cidade.
Todos correram até a janela e constataram que foi um apagão geral.
-Deve ter sido algum problema muito sério, talvez uma batida num poste ou coisa parecida.
Falou o homem.
-Vou buscar umas velas na cozinha
Falou a filha mais velha.

-Não precisa, só traga os fósforos. Vou acender esse candelabro aqui. Essas velas estão ficando feias, e preciso trocá-las. Vou aproveitar e acender as duas , assim fica mais claro.
A sala se iluminou prontamente e todos voltaram aos seus lugares, sem saber o que fazer.
A televisão se tornara uma rotina nas suas vidas, e agora só restava olhar para aquele candelabro aceso a frente deles, e para as sobras trêmulas nas paredes.
Foi quando ouviram a voz fraquinha, mas ainda clara de Tia Maria:
-Foi isso mesmo que aconteceu naquele dia com a Alzira.
Ninguém falou nada. Não sabiam quem era Alzira, mas como não tinham mais nada a fazer naquela escuridão, começaram a prestar a atenção à Tia Maria para se distraírem.
E ela continuava sem parar.
-Foi bem assim; eles acabaram de jantar e enquanto ela arrumava a cozinha, a luz apagou. Então ele disse para ela:
-Acende uma vela, Alzira.
Ela disse:
-Não tem mais, a última que tinha, eu acendi para a Santinha. Só se você for comprar, Alencar. Ela gostava de chamar ele de Alencar, era mais bonito.
-Eu vou.
E saiu na escuridão da noite.Ela ainda viu pela porta, a brasa do cigarro sumir no escuro.
Naquela noite a luz não veio e Alzira foi dormir. Quando Alencar saia, não tinha hora para voltar. Ficava sempre de conversa até altas horas com alguém
De manhã bem cedo Alzira acordou e viu que ele não tinha voltado para casa. Não tinha dormido ali. Alzira nem viu que ele não dormiu com ela, pois andava trabalhando muito, estava cansada. Logo depois saiu para trabalhar e foi perguntando para os conhecidos se tinha visto ele, o Alencar. Não, ninguém viu. Foi até o bar onde ele devia ter ido comprar a vela e o dono disse que ele passou lá, mas como as velas tinham acabado, ele continuou em frente. Então ela foi trabalhar, porque não podia faltar. Ficou o dia todo trabalhando e pensando. No fim do dia, voltou correndo para a casa, mas ele não tinha voltado.
Alencar não voltou mais. Naquela semana Alzira descobriu que ia ter um filho, e cadê o Alencar? Depois de quatro meses o nenê nasceu morto. Ela então arrumou uma roupas numa bolsa velha, e se mudou para outra cidade, e depois para outra, e para outra, sempre procurando saber o que ouve. Isso aconteceu no dia nove, e sempre no dia nove ela precisava acender uma vela para a Santinha encontrar ele. Um dia ela cansou de procurar e acender a vela. Ele sumiu, fazer o quê?! Mas ela não queria morrer sem saber o que houve com o Alencar.
Nesse momento, Tia Maria parou de falar e como a luz não havia voltado todos insistiram para que ela continuasse a história da Alzira e do Alencar.
Depois de um resmungo ela continuou;
-Alzira estava morando numa cidade do interior quando conheceu um homem de circo, daqueles que sabem fazer de tudo no circo. Um artista de verdade. E ele a levou embora com o circo. Assim quem sabe andando com o circo de cidade em cidade ela poderia descobrir o paradeiro do marido. Andou com o circo anos e anos e nem sinal do Alencar... As vezes pensava; decerto morreu. Até o dia que o homem do circo ficou muito doente e morreu. O homem do circo morreu. Bom homem, aquele. Mas morreu... Alzira ficou sozinha outra vez.
Tia Maria ficou pensativa...
A família atenta ficou esperando ela continuar a história, mas ela parecia que estava “fora do ar”.
-E aí Tia, o que foi que houve depois que o artista de circo morreu?
-Ela ficou sozinha outra vez e resolveu voltar a trabalhar mas já era tarde. Ela nem reparou que tinha envelhecido, tão preocupada em andar com o circo a procura do Alencar. Ninguém lhe dava emprego. Então ela teve que voltar para a cidade dela e procurar os parentes...
-Ah! Graças, a luz voltou! Como será que as pessoas viviam antes sem televisão, eim?
-Que bom, o filme ainda não começou...
Apagaram-se as velas e cada um tomou o seu lugar como todas as noites sem nem lembrar mais de Alzira e Alencar. Quando o filme acabou, foram ajudar a Tia Maria a ir para o quarto, coloca-la na cama, e só então é que perceberam que ela tinha morrido ali, quietinha, no seu canto sem ninguém notar.
No dia seguinte, o jornal trazia a triste história de José de Alencar, homem honesto, que numa noite de apagão, há muitos anos atrás, saiu de casa para comprar velas e foi confundido com um bandido procurado e preso por engano por quase quarenta anos. Um lamentável engano. Esquecido na cadeia, ele permaneceu isolado de toda a sociedade, só sendo descoberto agora, numa revisão de processos antigos e comparação de digitais.
Neste mesmo dia era enterrada junto com a sua irmã, a senhora Maria Alzira de Alencar...

2 comentários:

  1. Obrigada pela homenagem,

    A Mãe deixou lembranças muito bonitas e agradaveis, teve bons exemplos foi acolhida num lar muito especial e com pessoas muito dignas, sinceras, que contribuirão muito para sua personalidade.
    Denise

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  2. Denise, nós é que tivemos o previlégio de convivermos com a pessoa maravilhosa que foi(é, ninguém morre)a Ely, que com certeza transmitiu suas qualidades aos filhos e netos, pois só se educa dando bons exemplos, e isso fazia parte do seu ser.
    Muita paz, Tida

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