segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

O Paralelepípedo Fundamental

                               O Paralelepípedo Fundamental
Mal o dia amanheceu e aquela rua descalça e abandonada pelas autoridades competentes acordou em polvorosa e começou a se movimentar de forma inusitada...
Lafaiete, o mais velho morador, já beirando os noventa anos, era o mais animado, afinal ele foi um dos desbravadores daquela região que o progresso só olhava de longe e passava batido. Havia conseguido finalmente o grande feito, provavelmente, por conta das inúmeras cartas enviadas à prefeitura por anos a fio, todas devidamente xerocadas e guardadas numa pasta de plástico que carregava para cima e para baixo.
Tão empolgado estava que vestiu a sua melhor camisa, aquela de estampa xadrez, e o colete marrom, usado nas grandes ocasiões. 
Já sua esposa Ademilde colocou papelotes por toda a cabeça antes de dormir para que pela manhã seus cabelos mostrassem alguma rebeldia enquanto emolduravam o rosto pálido.
Dona Ismênia colocou o seu melhor vestido, separado para ir à missa, casamentos e velórios, enquanto Maria Dagmar vestiu uma calça vermelha e justa, o que causou alguns olhares e comentários maledicentes, mas também, a bem da verdade, alguns complacentes, visto que Maria Dagmar não dava sorte com namorados. Dois deles haviam morrido antes mesmo de ser formalizado o pedido de casamento. Sendo assim, ela caprichou na vestimenta para atrair os olhares dos trabalhadores que viriam passar o dia por aquelas bandas.
Dona Gertrudes, as cinco da manhã, já estava às voltas com fornadas de biscoitos na sua cozinha.
Para todos os lados daquela rua era possível ver um vai e vem inusitado.
De repente, um barulho crescente de motores começou a ser percebido ainda lá longe, e todos correram para frente de suas casas abanando freneticamente para os caminhões e máquinas que chegavam com seus trabalhadores que por um momento ficaram admirados pela recepção naquele que seria o tão esperado dia do início do calçamento daquela rua tão esquecida pelos políticos e suas prefeituras.
Todos os trabalhadores foram chegando e abismados observavam a alegria daqueles que os recebiam com palmas, bandeirinhas e café com biscoitinhos antes mesmo do início dos trabalhos, além de uma trova elogiando o evento recitada por uma das netinhas de Dona Altamira, ensaiada durante toda a semana pela pequena criança.
Sim, aquele momento virou um evento com toda pompa que o lugar permitia. Fotos, uma crônica para o jornal rabiscada as pressas, e para culminar, aquele momento tão solene para os moradores. 
Seu Lafaiete foi convidado pelo responsável da obra a colocar de forma perpendicular ao meio fio, o primeiro paralelepípedo; dando início ao calçamento tão esperado daquela rua ainda nua e fotografado incansavelmente de todos os ângulos, pelos que ali portavam celulares.
A partir daquele dia inesquecível, cada vez que seu Lafaiete ia até a farmácia, padaria, bar ou qualquer outro lugar, não perdia a oportunidade de contar, com lágrimas de emoção, para quem quisesse ouvir e em detalhes, como foi que ele colocou com as próprias mãos, o primeiro paralelepípedo naquela rua descalça. E a partir daí, volta e meia ele era convidado a fazer fotos com o pé em cima da pedra fundamental, como ele a chamava, agora tão famosa quanto ele e passou a ser conhecido como o padrinho do paralelepípedo.
Um ano depois, quando seu Lafaiete faleceu retiraram aquele mesmo paralelepípedo do início da rua e o colocaram sobre seu túmulo, numa cerimônia onde estiveram presentes todas as autoridades locais e alguns funcionários que fizeram o calçamento daquela rua descalça.
Seu Lafaiete até hoje é considerado um herói naquela rua totalmente calçada para alegria dos moradores que o reverenciam diante do paralelepípedo impávido que adorna seu tumulo e serve de cenário para foto dos visitantes.

Que este ano seus caminhos sejam pavimentados com pedrinhas de brilhantes... ;)



Um comentário:

  1. Não é difícil adivinhar o nome que a rua ganhou depois da morte do velho... texto nostálgico, Clotilde. Feliz ano novo!

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