O Paralelepípedo Fundamental
Mal o dia amanheceu e aquela rua descalça e abandonada
pelas autoridades competentes acordou em polvorosa e começou a se movimentar de
forma inusitada...
Lafaiete, o mais velho morador, já beirando os noventa anos,
era o mais animado, afinal ele foi um dos desbravadores daquela região que o
progresso só olhava de longe e passava batido. Havia conseguido finalmente o
grande feito, provavelmente, por conta das inúmeras cartas enviadas à
prefeitura por anos a fio, todas devidamente xerocadas e guardadas numa pasta
de plástico que carregava para cima e para baixo.
Tão empolgado estava que vestiu a sua melhor camisa,
aquela de estampa xadrez, e o colete marrom, usado nas grandes ocasiões.
Já sua esposa Ademilde colocou papelotes por toda a
cabeça antes de dormir para que pela manhã seus cabelos mostrassem alguma
rebeldia enquanto emolduravam o rosto pálido.
Dona Ismênia colocou o seu melhor vestido, separado
para ir à missa, casamentos e velórios, enquanto Maria Dagmar vestiu uma calça
vermelha e justa, o que causou alguns olhares e comentários maledicentes, mas
também, a bem da verdade, alguns complacentes, visto que Maria Dagmar não dava
sorte com namorados. Dois deles haviam morrido antes mesmo de ser formalizado o
pedido de casamento. Sendo assim, ela caprichou na vestimenta para atrair os
olhares dos trabalhadores que viriam passar o dia por aquelas bandas.
Dona Gertrudes, as cinco da manhã, já estava às voltas
com fornadas de biscoitos na sua cozinha.
Para todos os lados daquela rua era possível ver um vai
e vem inusitado.
De repente, um barulho crescente de motores começou a
ser percebido ainda lá longe, e todos correram para frente de suas casas abanando freneticamente para os caminhões e máquinas que chegavam com seus
trabalhadores que por um momento ficaram admirados pela recepção naquele que
seria o tão esperado dia do início do calçamento daquela rua tão esquecida
pelos políticos e suas prefeituras.
Todos os trabalhadores foram chegando e abismados
observavam a alegria daqueles que os recebiam com palmas, bandeirinhas e café
com biscoitinhos antes mesmo do início dos trabalhos, além de uma trova elogiando
o evento recitada por uma das netinhas de Dona Altamira, ensaiada durante toda
a semana pela pequena criança.
Sim, aquele momento virou um evento com toda pompa que
o lugar permitia. Fotos, uma crônica para o jornal rabiscada as pressas, e para
culminar, aquele momento tão solene para os moradores.
Seu Lafaiete foi convidado pelo responsável da obra a colocar de forma perpendicular ao meio fio, o primeiro paralelepípedo; dando início ao calçamento tão esperado daquela rua ainda nua e fotografado incansavelmente de todos os ângulos, pelos que ali portavam celulares.
Seu Lafaiete foi convidado pelo responsável da obra a colocar de forma perpendicular ao meio fio, o primeiro paralelepípedo; dando início ao calçamento tão esperado daquela rua ainda nua e fotografado incansavelmente de todos os ângulos, pelos que ali portavam celulares.
A partir daquele dia inesquecível, cada vez que seu
Lafaiete ia até a farmácia, padaria, bar ou qualquer outro lugar, não perdia a
oportunidade de contar, com lágrimas de emoção, para quem quisesse ouvir e em
detalhes, como foi que ele colocou com as próprias mãos, o primeiro
paralelepípedo naquela rua descalça. E a partir daí, volta e meia ele era
convidado a fazer fotos com o pé em cima da pedra fundamental, como ele a
chamava, agora tão famosa quanto ele e passou a ser conhecido como o padrinho
do paralelepípedo.
Um ano depois, quando seu Lafaiete faleceu retiraram
aquele mesmo paralelepípedo do início da rua e o colocaram sobre seu túmulo,
numa cerimônia onde estiveram presentes todas as autoridades locais e alguns
funcionários que fizeram o calçamento daquela rua descalça.
Seu Lafaiete até hoje é considerado um herói naquela
rua totalmente calçada para alegria dos moradores que o reverenciam diante do
paralelepípedo impávido que adorna seu tumulo e serve de cenário para foto dos
visitantes.
Que este ano seus caminhos sejam pavimentados com
pedrinhas de brilhantes... ;)
Não é difícil adivinhar o nome que a rua ganhou depois da morte do velho... texto nostálgico, Clotilde. Feliz ano novo!
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