sexta-feira, 27 de março de 2020

Lã para o Inverno

                  Lã para o Inverno
Amanheceu um belíssimo dia de outono. 
A temperatura perfeita; nem frio e nem calor. 
Nada de suor escorrendo e nem queixo batendo, tudo dentro do equilíbrio.
Era bem cedo ainda, tinha acabado de amanhecer e o sol nascer. Sentei-me diante da minha xícara de café para acabar de acordar quando a criatura peluda parou à minha frente e me perguntou assim à queima-roupa se eu sabia fazer tricô. E essa é uma pergunta que se faça antes das dez da manhã?
Antes de eu tomar meio litro de café não sei nem quem eu sou.
- Ãh?
- Eu vou perguntar de novo: Você algum dia fez tricô nessa longa estrada da vida?
- Bom dia, como vai você; e os parentes estão bem de saúde?
-Já vi que não está dando ainda, vou lá dentro e já volto, espero uma resposta coerente; é muito importante.
O que fazer quando duas criaturas de fuso-horários diferentes coabitam no mesmo espaço exíguo?
Quando ia pegar meu jornal, já saboreando a segunda xícara de café com leite ele apareceu de novo. Parou diante de mim querendo saber se eu fiz tricô na vida. Ele é altamente insistente.
- Bem, eu já fiz tricô e tenho até um certificado que me garante, mas eu não me garanto nada fazendo tricô. O cursinho durou seis meses e enquanto as amigas fizeram dez peças em vários pontos, eu desmanchei o meu trabalho dez vezes, mas finalmente consegui entregar no dia da formatura um casaquinho cor turquesa, que doei na primeira oportunidade para não ficar olhando para ele e me lembrar do período de tortura.
- Tudo bem, não duvido de uma só de suas palavras, imagino a cena e acho melhor trocar de assunto para não chorarmos juntos. O que eu quero mesmo é aprender a fazer tricô.
- Continua querendo mesmo depois desse meu sincero depoimento?
- Claro! Ouvi dizer que tricô e bicicleta nunca mais se esquece.
- Primeiro me diga qual é a novidade do momento.
- É que ouvi dizer que estamos no meio do outono e daqui a menos de dois meses entraremos no inverno e com ele o frio.
- O frio chega antes do inverno... aff,  que novidade...
- Sim, eu também ouvi dizer, daí pensei numa oportunidade de ganhar dinheiro fazendo blusas de lã...
Demorei um pouco, confesso, a entrar no clima.
Como em tempos de Pandemia a gente precisa inventar coisa, achei até uma boa ideia, fazer um cachecol para o inverno. E lá fui eu buscar as lãs e as agulhas, afinal não custava nada e não consigo negar nada à criatura peluda que divide a moradia comigo, sem falar que ando muito emotiva e precisando fazer alguma coisa par me ocupar...
Às cinco horas da tarde ainda estávamos, cada um com um par de agulhas nas mãos e enrolados entre fios de lã, contando: “um tricô, um meia, um tricô, um meia”, quando o interfone tocou e era o porteiro perguntando se podia subir com o casal de Carneiros que estavam entregando...
- Otávio!!!! Venha cá que quero te matar bem devagarinho...

Desde àquela hora ele está mergulhado nos lençóis, dormindo como um anjo e não está para ninguém...
Melhor eu voltar ao cachecol antes que eu faça um macarrão com essa lã e um molho peludo; um tricô, um meia, um tricô, um...

27.03.2020

quarta-feira, 25 de março de 2020

Observatório

                                         Observando
Daqui do observatório em que me encontro, me dei conta de que só os privilegiados estão em “reclusão social”.
Até o nome é Chic e bonito: “Reclusão Social”. Sim, porque o pessoal da periferia, os invisíveis, continuam morando num quartinho com vinte pessoas dividindo cinco pães e três peixes todos os dias quando conseguem trabalhar ou fazer um “bico”.
Mas e agora que “precisam” ficar no quartinho que fica entre três mil quartinhos respeitando a “Reclusão Social”?
Brincadeira né? Quem vai dar de comer para eles se não podem trabalhar? Os que passam de carro escondidos atrás do vidro fumê, vindo do supermercado com os porta-malas cheio? Os políticos que reclamam do “mísero salário” de 42 mil?
Infelizmente ninguém. 
-“Quem mandou ser pobre”?- Dirão os que estão na boa, respeitando a “Reclusão Social” e reclamando das músicas que o vizinho ouve, do barulho das crianças dentro de casa etc. 
Tudo os incomoda, enquanto eles assistem o Netflix tomando Cerveja (Corona ? ;)) e comendo brigadeiro na panela.
Ninguém! Nem os patrões, pois estão em “reclusão social” também fazendo contas o tempo todo, só avaliando os prejuízos e calculando as prioridades, onde os empregados estarão de fora, provavelmente; 
E para quando todo esse pesadelo passar e a gente acordar para uma realidade que não terá mais nada com o que era antes da Pandemia.
E os moradores de rua que tanto “comprometem” o visual da Cidade, tão limpa, bonita e florida?
Estes também estão TODOS JUNTOS recolhidos num pavilhão, onde no Carnaval, todos cantavam e dançavam como se não houvesse amanhã, mas infelizmente para os que não morrem durante a noite, sempre haverá um amanhã trazendo as consequências do ontem.
 “Nada é como foi há um segundo”.♪♫♪♫
É como se um tsunami, um terremoto e uma avalanche de lama acontecesse na mesma semana para todos ao mesmo tempo, inviabilizando qualquer coisa que não seja sobreviver como der; onde um pedaço de pão, um copo de água potável, um banho decente e álcool para uma higiene melhor, se tornou um luxo para poucos, só para nós que estamos em “Reclusão Social”.
E isso tudo, para os pouco afeitos à Espiritualidade, aos mais apegados, materialistas e calculistas, é um momento totalmente sem chão, estão suspensos no ar, volitando como mariposas ao redor da lâmpada; até quando meudeus? 
Quem sabe?

E agora, quem poderá ajudar?

Infelizmente o Chapolim Colorado já se aposentou...

quinta-feira, 19 de março de 2020

Armadilhas Orientais

                                     Armadilhas Orientais
Acordei não tinha amanhecido e o sol apenas despontava.
Ao sair da cama vi que o Otávio estava concentradíssimo diante da tela do computador e falava algo que eu não entendia.
Cheguei mais perto e vi que ele estava concentrado numa vídeo conferencia com um Chinês, na verdade um Mandarim, o que me causou espanto para os tempos atuais, mas vindo da criatura peluda dos olhos amarelos, nada mais me admira.
Enquanto eu passava o meu café para acordar e pegar no tranco, ele apareceu ali na cozinha, meio ressabiado e pensativo.
- Bom dia para você também, e o que foi agora, qual é a do dia?
Perguntei sem querer saber na verdade, pois boa coisa não seria.
- Eu estava conversando, trocando umas ideias, com meu amigo Chinês, o Ting.
- E desde quando você fala Chinês?
- Mandarim!!! E desde sempre, claro!
- Sim, claro, desde sempre, como pude me esquecer desse detalhe? E o que ele queria?
- Na verdade eu é que queria negociar com ele, mas ele não aceitou porque não está dando conta da demanda...
- Negociar, o quê, meu ilustre poliglota?
- Eu queria comprar o esquema da armadilha do Vírus Coroado e fazer uma aqui para nós, ele me disse que ela tem um raio de abrangência equivalente a um Campo de futebol ou um pouco mais até, aliás foi ele que conseguiu dominar o vírus lá para aquelas bandas só com a implantação das armadilhas, começou dentro daquele hospital que construíram em duas semanas e já até demoliram de tanto que deu certo. As energias que emanam da armadilha são tão fortes que torram os vírus que estão no ar, voando, em segundos.
- Não sei por que agora me lembrei daquelas raquetes de matar mosquitos que a gente compra no Camelô e só duram alguns dias, até a pilha acabar e faz um barulhinho tipo Ziiiipp, ziiipp...
-Não dá mesmo para atualizar você com as novas altas tecnologias do Oriente e já vem você avacalhando com tudo...
- Eu? Que ideia, eu nem falo Mandarim...

E lá foi ele para os lençóis já que estamos em reclusão social e não há muito o que fazer...


terça-feira, 17 de março de 2020

Em Tempos de Pandemia

                             Em Tempos de Pandemia
Ainda a pouco, já cansada de tantas informações sobre o Senhor Vírus Coroado, desliguei a televisão e peguei um livro para ler.
Por hora me considero suficientemente informada sobre o assunto e me cuidando na medida do possível.
Estou de molho em álcool gel na minha casinha, na companhia da criatura peluda de olhos amarelos, como convém às pessoas que se preocupam consigo e com os outros.
Logo cedo Otávio me perguntou o que estava havendo, até porque entro e saio de casa o tempo todo, quase como um Cuco de relógio Suíço e agora passamos o dia em casa cruzando pelos corredores, o que parece já começamos a sentir, por demais, a presença um do outro.
No meio da tarde o porteiro avisou pelo interfone da chegada de um grande pacote, o que logo acendeu em minha cabeça a sirene de alarme.
“O que a criatura peluda inventou dessa vez?”
Afinal, se não fiz encomendas, o que teria comprado o meu companheiro?
Talvez uma escova nova para desfiar o pelo, que quando ele se estressa fica cheio daqueles nós, à moda Bob Marley. Às vezes é até preciso cortar tudo daí ele fica totalmente despelado, o que é motivo de mau humor por três meses.
A campainha tocou e era o porteiro trazendo a encomenda; vinha de máscara e luvas. Um problema sério o que fez Otávio arregalar ainda mais os olhos amarelos lacrimejantes.
A minha curiosidade não me permitiu sair de perto sem ver o conteúdo. Mas, prevendo a minha reação ele levou tudo para o quarto e por lá ficou entretido.
Me mordendo de curiosidade voltei a ler meu livro afundada na poltrona ao lado da janela. Respeito mútuo na convivência é fundamental.
Depois de passar uns 15 minutos, não aguentei e fui passar um café para conter a minha curiosidade.
Já anoitecia quando ele saiu do quarto e veio para perto de mim cheio de tristeza que até me comoveu...
- O que foi?
- Me sinto impotente diante da situação atual; queria fazer uma armadilha de pegar vírus. Onde já se viu um ser de tamanho tão insignificante, que não pode ser visto a olho nu, só com aparelhos microscópicos, ter o poder de parar o mundo e desestabilizar o planeta? Vou me recolher aos lençóis, e não estou para ninguém, nem de máscara, luvas ou roupa de astronauta e nem que seja o Presidente da OMS. :(

Sem palavras voltei ao meu livro...