Uma historia de Natal.
Por volta das vinte e uma e trinta horas foram chegando os filhos e suas famílias. Junto deles, alguns parentes e agregados. Sogros dos filhos, pais dos genros ou noras, cunhados acompanhados de suas/seus namoradas (os), além de parentes avulsos, do tipo tio velho viúvo, tia solteira solitária e saltitante além da avó de uma nora, tão velhinha que nem andava mais, chegou aboletada em sua brilhante cadeira de rodas, bem falante e lúcida que foi logo se enturmando, cumprimentando a todos de forma especial e carinhosa o que causava em todos imediata simpatia e recíproco cumprimento.
Já ia perto de vinte e três horas, o perfume das iguarias variadas vindo da cozinha causava em todos certa ansiedade para que os chamassem para saborear a ceia, posta pouco a pouco sobre a mesa ricamente decorada com flores vermelhas e velas acesas. Era noite de vinte e quatro de dezembro. Lá pelas tantas a bisavó de cadeira de rodas resolveu perguntar a um dos muitos garotinhos que corriam de um lado para o outro atrás de um carrinho de controle remoto que parou em baixo da sua cadeira, se ele conhecia a história de Jesus. O garoto levantou-se assustado com o inusitado da pergunta vinda de quem veio e se afastou para o outro lado da sala. Sorridente a velha senhora não se abalou e continuou a fazer a mesma pergunta para todos que se aproximavam de sua cadeira, sempre com um sorriso nos lábios. Estava se divertindo muito com aquela constatação de que ninguém queria falar do assunto. O fato até causou certo constrangimento em algumas das pessoas como se o assunto não “combinasse” com a ocasião. Na verdade ela só queria saber se algum dos ali presentes sabia contar a história básica sobre a vinda de Jesus à terra. Até que um dos inúmeros convidados ali presentes, um senhor de cabelos brancos e rosto jovial, resolveu entrar na brincadeira enquanto desembrulhava um pequeno pacote envolto em papel vermelho e amarrado com uma fita verde, resolveu responder enquanto a observava bem dentro dos olhos. Sorridente resolveu responder a tão insistente pergunta da senhorinha;
- Ah, dona Martinha a senhora sabe que todos conhecem essa história a pelo menos dois mil anos. Por que a senhora insiste em perguntar?
- É que acho estranho que todos saibam de tudo o que acontece pelo mundo, conseguem reunir em cada lar pelo menos 35 pessoas para comemorar o aniversário de Jesus e paradoxalmente para a maioria das pessoas Ele não passa de um ilustre desconhecido. Hoje mesmo pude observar que os apreciadores de futebol conseguem para cada jogo de campeonato discorrer o nome de cada jogador dos dois times, além de descrever em detalhes os lances mais complicados, porém não sabem dizer o nome dos doze apóstolos de Jesus, não é interessante?
- Com certeza, dona Martinha, até são capazes de dizer que os três reis magos eram na verdade três anões que atravessaram o deserto montado em camelos para trazer presentes esquisitos. Que José escolheu a estrebaria para o filho nascer por que Maria queria experimentar emoções fortes, não é?
- Que absurdo é esse Sr. Dorival, não se brinca com uma coisas dessas!!! O senhor sempre leva tudo para o lado da brincadeira , da irreverencia, até parece que é um ateu convicto e não um homem de fé...
- A senhora está enganada, - falou suavemente-, é por que tenho certeza em Deus e sou devoto da Santíssima Trindade; Jesus, Maria e José a sagrada família, que posso brincar, pois é uma brincadeira , apenas uma brincadeira... mas hoje é o único dia que eu brinco com esse assunto, faço piadas e digo bobagens, pois é dia de festa e o Aniversariante gosta de alegria. O mundo é para ser alegre e não cheio de tristeza. É dia de festa e festa é para ser alegria, sem alegria uma reunião dessas seria insuportável, cheia de falsos sentimentos. Dona Martinha a senhora não me conhece apesar de sermos meio parentes a tanto tempo e pode acreditar que tenho o maior respeito pela senhora e para as coisas de Deus, e acho que brincar faz bem principalmente no dia de hoje, deixa tudo mais leve.
Neste momento a maioria ds convidados foi se aproximando para ouvir a conversa dos dois e fazer parte da conversa.
D. Martinha ficou séria e introspectiva por um momento e falou:
- Então nos conte a sua versão da historia do Natal.
- Pois bem, lá vai:
- Certo dia, um operário mal pago e explorado pelo patrão, que trabalhava numa carpintaria, foi despedido. Desanimado chegando em casa avisou para a sua mulher de nome Maria que fora despedido e perguntou desanimado, o que poderiam fazer?
Prontamente ela respondeu:
- Vou fazer faxina, lavar roupa para fora, ajudarei no que puder...
- Cê ta louca Maria? Com essa “barriga de menino” (era assim que ele falava da gravidez dela), não vai conseguir nada. Fica aqui no teu canto, fica “fria” que eu dou um jeito. Amanhã mesmo vou até a praça procurar serviço e logo mais já trago “o de comer”.
De manhã cedo, Maria em silêncio deu-lhe um beijo demorado, ajeitou o cabelo dele de um modo só dela e em seguida ele se foi apressado para a pracinha, procurar trabalho.
Maria colocou seus poucos pertences numa caixa de madeira, sem enfeites ou adereços. Dobrou sua colcha de retalhos, única coberta e deixou-a ao pé do catre despojado até de um colchão convencional. No lugar dele, alguns pelegos de carneiro amaciavam a madeira dura que servia de estrado. Poucas horas depois José entra afobadamente em casa e falando ligeiro diz algo que Maria não entendia;
- Precisamos fugir...precisamos fugir daqui rápido!!!
- E por causa de quê, home?
- Por causa de quê tem um maluco que tá matando mulher grávida, “de barriga de menino”. Já matou “umas par delas”, ninguém sabe quem é e nem porquê e se a criança já nasceu e tá no berço ele mata os dois. Tá maluco e com maluco não se conversa, faz uma trouxa de roupa, leva “um de comer” que eu vou encilhar o burrico do compadre. Depois que tudo passar eu trago o burrico de volta.
Desolada com a mudança de planos Maria pegou suas tralhas e ajudou o marido a amarrar tudo no lombo do burro. Logo em seguida os dois se botaram à caminho do sertão...
Fez-se um silêncio por uns momentos e uma voz vinda da cozinha gritou:
- Gente; vamos para a mesa, tomem os seus lugares antes que a comida esfrie...
Era Noite de Natal e todos se reuniram em torno da farta mesa como acontecia na maioria das casas.
D. Martinha elevou seu pensamento a Jesus pedindo bênçãos para a família, para o mundo e para todas as “Marias” e “Josés” deste mundo de Deus que se preparavam para receber um filho que faria na vida deles toda diferença.
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