Por conta de um acontecido com a minha filha Lígia quando ainda fazia faculdade, escrevi um conto divertido chamado "A Bicicletinha".
Já o postei aqui em agosto de 2009 e agora resolvi postá-lo novamente.
Tudo começou por conta de que durante muito tempo não tinha ônibus direto de Florianópolis-SC para Campinas-SP. Então era uma mão-de-obra daquelas, chegar depois de quase 15 horas de viagem no Terminal Rodoviário do Tietê de SP ao raiar do dia, cheia de sono carregando malas, sacolas, pacotes etc misturando-se aos milhares de pessoas que ali circulam dia e noite também carregados de bagagem. Depois tinha de fazer a baldeação para outro ônibus, o "Cometão", para Campinas-SP e continuar a viajar por quase duas horas ainda. A gente chegava exausta e a maioria dos passageiros irritados e mau-humorados, que felizmente não era o caso da Lígia sempre feliz e saltitante.
Mas por conta de fazer a faculdade de engenharia o dia todo, na sexta feira ela saia direto da aula carregando o material de estudo com a mala de viagem e embarcava direto no ônibus das 18 horas. Viajava a noite toda, e ainda quando chegava, ia direto ao dentista apertar o aparelho e só depois ia para casa ja quase na hora do almoço, onde descansava enquanto contava as novidades até as 16 horas do domingo, quando fazia o sentido inverso da viagem para Florianópolis.
Todos os meses era assim. Neste período morava também em São Paulo - Capital, um sobrinho filho da minha irmã Nanci, com a mulher e uma filha pequena. Dai é que aconteceu o que me levou a ter a idéia de escrever o conto.
Minha irmã telefonou para a Lígia no meio da semana e pediu para ela levar uma encomenda, na verdade um presente para a neta, mas garantiu que ela não se preocupasse porque o filho Acácio, a esperaria na porta do ônibus de manhã cedo e pegaria com ela a encomenda sem falta, antes que ela fizesse a baldeação, que ela não se preocupasse. É bom que se diga já, que ele a esperou certinho, na plataforma de desembarque sem problemas.
Mas a Lígia na verdade, levou o maior susto quando estava embarcando ainda, quase na saída do ônibus, quando a minha irmã apareceu com uma bicicletinha daquelas "Toncas", de rodas gordinhas, toda cor-de-rosa, o que fez a minha filha pensar; -" e se ele não chega por algum motivo, o que vou fazer com isso la na rodoviária do Tietê?"-
Daí em diante, sempre que alguém lhe pede um favor ela logo responde sorrindo: "desde que não seja uma bicicletinha"... Então um dia eu sugeri que ela escrevesse uma história em cima desse acontecido, mas ela me disse,
- você teve a idéia, você escreva. Ei-lo aqui.♥ A Bicicletinha
- Viva! Viva! Consegui, consegui...
Ele gritava e pulava timidamente com os braços para cima percorrendo a pequena casa onde morava com sua madrinha que o acompanhava logo atrás toda contente, festejando a boa notícia com aquele jovem que para ela, era um filho.
Deodorinho não teve como se costuma dizer, muita sorte na vida. Filho de mãe solteira que morreu no parto, foi criado pela avó, já idosa e doente que veio a falecer quando o garoto entrava na adolescência. Desde então, se mudou com seus poucos pertences para a casa da única parente que lhe sobrou; a tia e madrinha d. Firmina, senhora idosa e muito religiosa, que lhe completou os estudos com o pouco dinheiro guardado na poupança por sua avó, para o futuro do neto.
D. Firmina, senhora de princípios rígidos, beata assumida, se viu de repente com a incumbência de criar aquele menino. Ela que por sua vez era solteira e nunca teve filho, como foi até morrer sua irmã, a mãe do Deodorinho. Ninguém conheceu o pai dele.
- Fazer o que? Vontade de Deus! Ele é que manda no nosso destino e não podemos fugir dele.
Dizia ela conformada.
Meio perdido em referências familiares, principalmente masculinas, criado por mulheres de idade avançada muito religiosas e costumes antigos, o garoto tornou-se um tanto esquisito, vamos chamar assim. Muito magro e alto, olhar meio cismado, sem vícios, sem namorada, mas a bem da verdade era muito inteligente e educado, isso não se podia negar. Estudioso, introspectivo e muito inseguro diante da vida, sua cabeça era povoada de indagações, sonhos e realizações como todo mundo, mas faltava aquele viço e a firmeza de um homem. Tinha as mãos sempre úmidas de suor nervoso. Vestia-se sempre com camisa de manga comprida e colarinho abotoado. Não tinha amigos de sua idade. Freqüentava a biblioteca Municipal onde lia de tudo, satisfazendo a sua curiosidade sobre todos os assuntos. Foi sempre bom aluno e agora era um homem formado. Até fez alguns cursos e alguma especialização numa empresa pequena de uma cidade vizinha, o que não contribuiu muito para sua auto-confiança. Havia uma aparente incoerência entre ser inseguro e sonhar grande, mas Deodorinho era assim. Sua cabeça sonhava alto, queria morar numa grande cidade, talvez numa capital, ganhar um bom salário e crescer na vida e principalmente, ser igual a todo mundo, seja lá o que isso queira dizer. Podia ser até uma cidade bem longe, não tinha importância, ele iria assim mesmo.
Para tanto foram encomendadas por sua madrinha e suas amigas ao padre da cidade, inúmeras novenas e visitas da imagem da Santa Edwiges, São Judas e Santo Expedito em sua casa com novenas no local para conseguir o intento. E eles não lhe faltaram, logo no semestre seguinte veio a resposta de uma grande empresa da Capital lhe oferecendo emprego e convocando-lhe o comparecimento no dia 21/11, as dez horas da manhã, portando todos os documentos para a entrevista.
Seria no começo da semana seguinte.
- Viva! Viva! Consegui o emprego! Consegui!
Gritava timidamente Deodorinho, com o coração acelerado de emoção empunhado o telegrama para o alto numa das mãos, acompanhado das palmas da madrinha d. Firmina provocando a curiosidade de suas vizinhas mais próximas que vieram ver o que estava acontecendo e foram entrando sem cerimônia na casa, para fazer parte daquela alegria da qual se sentiam também co-autoras, já que suas orações e comparecimento às novenas também tiveram algum peso na decisão dos santos.
Todos batiam palmas e entoavam cantos sacros em louvor a Deus. Até que cansados, pararam ao redor da mesa da cozinha e resolveram tomar um refresco com biscoitinhos caseiros para comemorar.
Agora mais descansados todos comentavam os detalhes da viagem, o que ele deveria levar na mala etc...
- Não esqueça de um bom agasalho!Isso era primordial para uma delas que repetia com ênfase de vez em quando.
- Na capital de São Paulo, faz frio!
- Mas estamos em final de novembro...
- Nunca se sabe numa capital como São Paulo acontece coisa que até Deus duvida, que dirá um frio de repente!
Uma delas até contou com muitos detalhes, que tinha um afilhado muito querido que se mudou para lá logo no primeiro ano, e ela sabia que ele estava sempre com bronquite. -"Agora já deve estar curado e vai até para a escolinha, um amor."-
- Coitadinho, morando lá naquele fim de mundo! Nunca esqueço dele, “judiação”, sempre faço orações por aquele menino, mas a minha comadre sempre escreve ou telefona contando como ele vai passando, é, escreve ou telefona, sim. E quando a carta demora, eu telefono; nunca se sabe o que pode acontecer por aquelas bandas...
E não parava de falar com aquela maneira peculiar do interior de São Paulo ou Minas.
E assim as velhas senhoras, algumas disfarçando as lágrimas de saudade precoce, no afã de agradar Deodorinho falavam sem parar deixando o rapaz cada vez mais embaraçado e aturdido, com tantos conselhos, palpites e opiniões. No fundo mordia-lhes a curiosidade de conhecer outra cidade e transferiam para ele essa emoção enquanto ele contava os minutos e os segundos para sair dali conhecer o mundo lá fora, ver ao vivo as coisas que via na televisão e nos livros que lhe pareciam bem diferentes desse “mundinho” em que ele vivia no interior de Minas entre padres e beatas. Ele reconhecia todo o carinho da madrinha e de suas amigas que o rodeavam o tempo todo desde menino, mas queria sair logo dali. Por isso mandou "currículo" para uma grande empresa na capital de SP e deu sorte, agora foi chamado para entrevista. Um frio na barriga se tornou constante daquele momento em diante, mas a vontade de ir era maior e incutia-lhe coragem e determinação.
Todos estavam felizes por ele e com ele. Aquele final de semana foi muito agitado, inigualável. Aconteceu de tudo, era um corre-corre só. Sua madrinha ficou tão nervosa que a pressão subiu, deu uma batedeira no coração e tiveram que leva-la para a Santa Casa, o único hospital da cidade. Demoraram por lá umas horas e voltaram para casa com d. Firmina medicada e cheia de recomendações médicas, pouco tempo antes do embarque para São Paulo.
As amigas já tinham lavado e passado toda a roupa de Deodorinho que repousavam esticadas e prontas para a viagem sobre a cama ao lado da imensa e entulhada mala marrom.
Uma canja quente e saborosa esperava sobre o fogão na cozinha, enquanto o cheiro de café e pão caseiro se espalhava pela casa.
Agora passada um pouco da euforia, um pouco mais calmos, todos conversavam animadamente à mesa, naquele final de domingo inesquecível.
Ao anoitecer ele já estava pronto, vestido de colarinho e gravata, para uma viagem de aproximadamente doze horas, ouvindo pela milionésima vez as recomendações educativas de cada uma delas, como se ainda tivesse sete anos de idade e fosse o seu primeiro dia de aula; ele que já completara vinte e seis.
Sorria automaticamente como se fosse o príncipe encantado das histórias infantis. Concordava com tudo e nem por um momento demonstrava sua aflição interior. Ninguém que o observasse descobriria seus pensamentos. Deodorinho pensativo e calado num sorriso congelado no rosto observava ao redor, aquele mundinho que ele conhecia tão bem, já sentindo um pouco de saudade desse burburinho de vizinhos, do cheiro do café e pão caseiros, desse carinho espontâneo de cidade pequena onde todos se conhecem. Jamais esqueceria disso tudo. Jamais! Pensava ele. Iria enfrentar um período longo de viagem, chegaria ao amanhecer de um novo dia para uma nova vida.
A chegada estava prevista para antes das sete horas da manhã. Tempo suficiente para lavar o rosto no banheiro da rodoviária, fazer a barba e tomar um café antes de pegar outro ônibus com destino à entrevista para o seu novo emprego. Estava anotado tudo num papel com horários cronometrados, até o endereço de uma pensão que lhe deu seu Laureci " do frete", onde se hospedou quando foi a São Paulo há quinze anos atrás. Começaria a partir daí uma nova vida. Não tinha idéia quanto tempo levaria para poder voltar para sua casa, aquele lugar e aquelas pessoas. Talvez não voltasse nunca. Quem sabe? Isso ia depender de muitas coisas. Entre elas o de gostar ou não da nova vida. E do novo emprego. Um pouco depois enquanto todos esperavam o táxi que o levaria à estação de embarque, ele ficou novamente pensativo isolando seu pensamento das infindáveis recomendações sentindo o seu coração bater no pescoço. Fechou os olhos por um momento e pensou;
- Preciso relaxar. Preciso me apresentar bem e muito seguro. Afinal em breve estarei dando os primeiros passos na brilhante carreira de executivo. Preciso de muito autocontrole.
A aparente calma constante não deixava transparecer o turbilhão de pensamentos desencontrados que faziam sua cabeça latejar e o coração acelerar. Deodorinho tinha o temperamento fechado. O seu sofrimento desde seus primeiros anos de vida, fez com que controlasse suas emoções para não ser rejeitado como uma criança chata, chorona ou teimosa. Assim nunca dizia não para ninguém, principalmente para a sua madrinha e as amigas dela que o mimavam e o achavam “uma moça” de tão educado.
Finalmente chegou a hora da despedida. Todos choravam copiosamente, Deodorinho sorria amavelmente para todas aquelas velhas e conhecidas senhoras, amigas e vizinhas de sua madrinha. Beijava uma a uma abraçando-as antes de entrar no táxi do seu Laureci "do frete". Este também era seu conhecido, tinha um caminhãozinho de frete e um automóvel antigo como táxi. Os fregueses telefonavam e contratavam ou o caminhão ou táxi. Assim ele estava sempre servindo a comunidade. E era ele que levaria Deodorinho até o ônibus com as bênçãos de todas as velhinhas e do padre, que chegou a tempo de lhe fazer o sinal da cruz de longe abanando um adeus junto com elas. Sentado ao lado do motorista foi olhando para traz e também abanando a mão para o pequeno comitê de despedida em frente a casa, enquanto enxugavam as lágrimas de saudade sincera, até sumirem no final da rua.
Quando o táxi virou a curva da esquina da estação de ônibus ele viu uma das amigas da sua madrinha, dona Santinha, correndo com muita dificuldade, esbaforida mesmo. Vinha em sua direção com um enorme embrulho mal arranjado na mão, segurando o que parecia ser um cabo num dos lados.
- Ah! Graças ao São Judas, padroeiro das causas impossíveis, eu consegui chegar a tempo, vim rezando para conseguir e finalmente consegui.
Falava ofegante e sem parar, vermelha como um pimentão.
- Deodorinho, meu querido, nunca lhe pedi nenhum favor, mas esse eu vou pedir porque você é da maior confiança, meu filho; Lembrei-me que tinha guardado no porão a bicicletinha de estimação da família, que primeiro foi do meu filho Vesúvio, depois do meu neto Armandinho que já está quase um homem e eu quero mandá-la agora para o meu afilhadinho que mora lá em São Paulo, o Genivaldo. Não vai lhe dar nenhum trabalho meu filho. Logo mais, um pouco mais tarde que o telefonema é mais barato, eu ligo para a minha comadre e ela manda o marido pegar a bicicletinha na rodoviária bem cedo. Assim que o seu ônibus chegar, ele já vai estar na rodoviária esperando.
O que ela chamava de bicicletinha era um daqueles tradicionais triciclos, também conhecidos por "tico-tico", com assento de madeira, que quase todo mundo que viveu “antigamente” teve um.
Um frio gelado percorreu a espinha de Deodorinho e o sorriso de príncipe encantado congelou na face. Sem saber o que dizer e sem poder se negar ao delicado pedido da veneranda senhora, pegou num dos lados do guidão que aparecia fora do papel mal ajeitado, e sem conseguir articular uma sílaba despediu-se da sorridente e suarenta amiga de sua madrinha que vibrava feliz por mandar o “presentinho” para o afilhado.
Como se tivessem lhe dado uma paulada na cabeça, o rapaz olhava para o pacote disforme em sua mão, para frente e para os lados ainda sem saber o que fazer. Não sabia se levava a bicicletinha para a parte de cima do ônibus e a colocava ao seu lado no banco, ou se a deixava no bagageiro junto de sua mala. Afinal era uma bicicletinha de estimação, de família, tinha passado por gerações, uma verdadeira antiguidade, não podia deixar que nada acontecesse com ela. Não dá para comprar outra, só em antiquário, sei lá. E agora?
Deodorinho era daquelas pessoas metódicas, meticulosas, perfeccionistas, que não sabem lidar com situacões inesperadas, com imprevistos e esse era de bom tamanho. A conselho do motorista que assistiu tudo, deixou a bicicletinha devidamente registrada com etiqueta de bagagem no bagageiro inferior, mesmo porque, ele havia comprado só uma passagem e não poderia ocupar o banco do lado que deveria ser ocupado por outro passageiro. Respirou fundo e ainda aturdido entrou no ônibus, conferiu várias vezes o número do assento com a passagem que levava na mão, como se não soubesse mais ler e só então, sentou-se. Olhou pela janela e ainda viu dona Santinha abanando uma mão freneticamente enquanto a outra assoava o nariz. Retribuiu pateticamente o gesto sentindo os ouvidos zumbirem cada vez mais alto. A viagem seria longa, aproximadamente doze horas ou mais.
Olhou diversas vezes o relógio sem conseguir ver as horas ja com os olhos embaçados pelas lágrimas de angústia.
Finalmente o motorista deu partida e ruidosamente o ônibus foi se deslocando para a saída da cidade em direção ao seu destino. Deodorinho ainda ficou olhando para fora, observando a noite escura por um tempo até que viu as últimas luzes da cidade ficarem cada vez mais para trás e só aí então, fechou os olhos e dormiu. Por quanto tempo, não saberia dizer, talvez uma hora, talvez uns minutos, o fato é que de repente Deodorinho pulou no banco assustado, felizmente não havia ninguem sentado ao seu lado, como se o ônibus com poucos passageiros a bordo, tivesse dado um grande solavanco num daqueles imensos buracos de estrada. Parecia que seu cérebro tinha se iluminado fantasticamente com uma lucidez assustadora. Um filme começou a passar pelo seu pensamento e com olhos arregalados de pavor, ele se viu descendo do ônibus no Terminal Rodoviário do Tietê em São Paulo, que ele iria conhecer logo depois do raiar do sol daquela segunda-feira de final de novembro. Pouco antes das sete da manhã, ele estaria num lugar desconhecido e até assustador, pelo que ele tinha ouvido falar e visto pela televisão. Imaginou-se andando pelo meio daquela multidão com uma enorme e pesada mala, entulhada de roupas de frio e tudo mais em pleno verão, suando e com uma bicicletinha na outra mão. Precisava encontrar uma pessoa que nunca viu mais gordo e que também não o conhecia. Como eles iriam se conhecer? Quantas pessoas andam pela rodoviária carregando bicicletinhas? E se a dona Santinha não conseguiu falar com a mãe do menino? E se o marido da mulher tiver um compromisso logo de manhã e não puder ir ao meu encontro? E se o menino ficou doente durante a noite e eles o levaram ao médico? E se a doença for grave e eles o internaram? E se eles se separaram ou morreram ou a dona Santinha morreu depois que eu saí da cidade e nem deu tempo para ela telefonar? Ela é bem velhinha, então a mãe do afilhadinho Genivaldo não vai saber que estou levando a bicicletinha para o menino dela e não vai falar para o marido que não vai se preocupar em me encontrar, mesmo que seja o seu dia de folga. Por que ele iria deixar de dormir um pouco mais ou pescar para ir de manhã cedo à rodoviária buscar uma bicicletinha que mandaram de Minas? É claro que ele iria pescar e não iria por nada desse mundo buscar uma bicicletinha na rodoviária. E se não for o dia da folga dele então? E se ele trabalha numa grande empresa e não pode sair em horário de serviço para ir pegar uma bicicletinha na rodoviária as sete da manhã de uma segunda feira, que a madrinha do menino mandou do interior de Minas? Ou é daqueles bem chatos que não gosta de fazer favor para ninguém nem por uma bicicletinha de estimação que pertenceu aos antepassados da madrinha do filho dele, a d. Santinha?
"- A madrinha que se lixe!" - Ele vai dizer. Eu é que não vou pegar uma bicicletinha às sete da manhã na rodoviária do Tietê para o filho da minha mulher! -"
E como é que eu faço? Tenho que comparecer na empresa e assumir o meu emprego e não posso chegar lá às nove horas da manhã levando pela mão a bicicletinha de estimação da dona Santinha! Ou quem sabe eu pego a bicicletinha e guardo no guarda volumes?! O seu Alfeu me disse que na rodoviária tem uns armários, que a gente paga para guardar coisas. É, mas eu trouxe pouco dinheiro e não vou gastar pagando estadia para a droga da bicicletinha, sem falar que tenho que voltar na rodoviária depois para pegá-la e vou levar para onde depois? O que eu vou fazer com a bicicletinha de estimação da dona Santinha, meu deus, vou ficar com ela na pensão onde vou morar? Mas se eu ainda não encontrei a pensão que vou morar?! O seu Laureci "do frete" me deu o endereço e eu nem desconfio se fica na direção do meu trabalho, sem falar que já faz mais de quinze anos que ele se hospedou só por uma semana naquele lugar. Pode ser que nem exista mais, nem a pensão e nem o prédio... Depois como é que eu vou para uma pensão de bicicletinha na mão? Vão me perguntar se é do meu filho, e eu vou ter que dizer que não, ora! E que desses assuntos eu nem entendo muito, nem de filhos e nem de fazê-los e se querem saber a verdade; até sou virgem, só tenho a teoria, mas não tenho a prática. E depois é uma bicicletinha antiga, eles nem vão acreditar que não é minha mesmo, vão achar que é uma daquelas lembranças que a gente guarda e leva com a gente, para o resto da vida. Como o meu travesseirinho que tenho certeza está na mala, ou um ursinho qualquer. Vão me achar um cara estranho e meio esquisito e aí vão me botar para fora da pensão e eu vou morar aonde? Vou ter que pegar outro táxi e com certeza o motorista vai me levar até outra pensão e vai me perguntar se a bicicletinha é minha e eu vou ter que contar que é da d. Santinha e que o pai do afilhado dela não é pai nem é padrasto, talvez vá pescar mas se não for, vai me encontrar as nove horas na rodoviária do Tietê, depois de me deixar na outra pensão, porque na primeira me botaram para fora só porque não quis ter filhos e nem bicicletinhas e nem ursinhos na infância. E só porque resolvi arranjar um emprego numa grande empresa de São Paulo, a minha madrinha que me criou, pediu aos santos e santas para ir a Santa Casa buscar o táxi do seu Laureci para me levar no guarda volumes da pensão e pegar o afilhadinho de d. Santinha que morreu de tanto telefonar para São Paulo e que ficou lá desde as nove horas...
E assim Deodorinho, ficou remoendo elucubrações enquanto roía o que restava das unhas pelo caminho. De manhã, em plena segunda feira, naquele caos total de transito, quando o ônibus encostou na plataforma de desembarque do Terminal Rodoviário do Tietê, Deodorinho tinha olheiras profundas, o rosto cinza amarelado que denunciava uma noite insone e desesperada, tentando resolver o problema da bicicletinha. Ao ver que o ônibus atrasou e já eram mais de oito horas, Deodorinho caiu num choro convulsivo e se deu conta que perdera a entrevista de emprego, pois seria impossível chegar lá às nove horas ou as dez, o que importa agora? Antes de desmaiar e dos enfermeiros tira-lo de dentro do ônibus e coloca-lo numa ambulância, ainda pode ver pela janela, que para todos os lados que olhasse, pessoas levavam pela mão uma bicicletinha de todos os tipos e cores, afinal era época de Natal.